A liberdade

— O grito de liberdade foi entre uma cagada e outra. Foram várias pelo caminho.

— Tava com diarreia?

— Exatamente.

— Capaz?

— Parece que comeu alguma coisa estragada um dia antes.

— Como você sabe disso?

— Vi na novela.

— Que novela?

— Não lembro o nome. Da Globo.

— E você acredita em novelas?

— Acredito.

— É tudo ficção.

— É nada. Dizem que é, mas não é.

— Você nunca leu? No final do capítulo sempre aparece escrito que as semelhanças com os fatos reais são só coincidências.

— Então uma dessas coincidências é diarreia de Dom Pedro às margens plácidas do Ipiranga.

— E o que isso muda? O desarranjo intestinal do cara não mudou nada da história.

— Mas é um detalhe importante.

— Detalhe escatológico!

— Você sabe o que significa escatológico?

— Claro que sei. É tudo que é relacionado a fezes, excrementos e nojeiras.

— É nada. Escatológico é tudo que pode existir depois do fim do mundo. É o extremo final.

— Desde quando? Onde você ouviu isso? Em qual novela?

— De qualquer forma, no final, os dois significados acabam em merda.

— De qualquer forma a independência foi proclamada, independentemente das merdas do líder.

— Cada um tem a merda que merece.

— Merda que merece?

— Ops! Ato falho. Cada um tem o líder que merece. Seja a merda que for.

— A merda só interessa ao seu dono.

— Depende do dono.

— A merda não é pública.

— Claro que é. Depois que sai pertence ao mundo.

— Cabe ao dono dispensá-la em lugar adequado. Se libertar dela para manter o ambiente saudável.

— É nada. As merdas são um problema de todos. Só os idiotas acham que a descarga o liberta das suas.

— Liberta sim. Manda pra longe.

— Longe de quem?

— Do dono da diarreia.

— Idiota.

Ouvi, não resisti, de dentro do banheiro do museu. Esperei eles saírem e me libertei. Ops, ato falho, quis dizer mandei longe. Para o mundo. Antes do fim.