Publicado em: 04 de setembro de 2021 às 06:31
A pandemia do novo coronavírus trouxe uma realidade, até então, desconhecida para nós do século XXI: milhões de mortes, isolamento social e grave crise econômica e social. Algo semelhante, mas não com tão graves consequências, assolou no início do século XX e foi chamada, indevidamente, de gripe espanhola.
Guardadas as devidas proporções afirmo, sem medo de errar, que pandemia de igual magnitude atingiu o mundo do vinho por volta de 1870 e devastou os vinhedos da Europa, ocasionando perda total na França, seu epicentro, e prejuízos incalculáveis na Itália, Portugal e em outros grandes países produtores da época. Não se pode esquecer que neste período o vinho tinha um enorme peso no PIB - Produto Interno Bruto - e na balança comercial dos maiores países do velho continente. Milhares de viticultores abandonaram a produção, a miséria tomou conta e muitas variedades de uvas chegaram a ser extintas. Depois de contornado o problema, sem solução definitiva até hoje, ocorreu o necessário e dispendioso replantio de todas as vinhas.
O responsável por essa desgraça foi uma espécie de pulgão, identificado como filoxera. Ele tem entre 0,3 a 3 mm, conforme o estágio em que se encontra. Seu ciclo de vida é complexo e em uma das fases assume a forma alada, como uma baratinha. Em cada estágio ela ataca uma parte da videira: ora as raízes, causando feridas que se transformam em porta de entrada para infecções; ora as folhas, o que prejudica a fotossíntese e, por consequência, a nutrição da planta, que vai lentamente definhando. Quando o viticultor se dava conta, já era tarde: a condenação era certa.
Se não fosse a revolução industrial a filoxera não teria chegado à Europa. Ocorre que ela é originária da América do Norte, onde sempre conviveu com as videiras da espécie “Vitis Labrusca”, a qual desenvolveu mecanismos de defesa: a seiva pegajosa de sua raiz, exposta em virtude do ataque do pulgão, age como uma cola na boca do inseto, selando-a. A seiva também colabora para a regeneração da ferida da planta, impedindo o ataque de fungos e o ingresso de infecções. Com o advento dos barcos a vapor, o tempo de viagem entre a América e a Europa diminuiu, permitindo que o inseto sobrevivesse, seja nas mudas das uvas americanas que eram transportadas, seja simplesmente na carga do navio, onde teria penetrado.
Descoberta a origem, veio o paliativo. Utilizar a videira de uvas americanas, que dá vinho de menor qualidade, tipo vinho garrafão, como porta enxerto para receber a “vitis vinifera”, uvas europeias, que geram vinhos de melhor qualidade, conhecidos como Vinho Fino. O interessante é que, embora a raiz, chamada cavalo, seja de uma planta americana, esta em nada altera a reconhecida qualidade da europeia, apenas protege-a da filoxera.
Não é sem razão que hoje o Chile é o maior exportador de vinho fora da Europa e, em 2020, o Brasil se tornou o maior mercado consumidor de vinho chileno no mundo, com um total de US$ 148 milhões. Ocorre que, antes da praga da filoxera, em meados do século 19, o Chile já importava mudas da França, dentre elas da uva Merlot. No entanto, sem que se soubesse a causa, vários vinhedos proporcionavam vinhos pouco agradáveis e, por isso, por um bom tempo, a Merlot chilena possuía uma má fama.
Esta situação perdurou por um século, até que na década de 90, um especialista francês, em caçada mundo afora por variedades francesas extintas pela filoxera, encontrou a Carménère, a qual estava praticamente extinta na França, em meio aos vinhedos chilenos de Merlot. Isso explicou a péssima reputação do Merlot chileno: A Carménère leva mais tempo para maturar que a Merlot e, ao serem colhidas juntas, aquela apresenta taninos adstringentes e forte aroma de pimentão verde.
O marketing aproveitou-se desta descoberta e fez da Carménère a casta símbolo do Chile. Com a devida maturação ela fornece um vinho macio, que conquistou o gosto dos brasileiros.
Por Mauricio Azevedo Ferreira, Promotor de Justiça aposentado que transformou uma paixão em atividade, dedicando-se ao ensino sobre vinhos. É responsável pelo conteúdo da página no Facebook, do perfil no Instagram e do canal do YouTube Apaixonado por Vinhos, além de ministrar cursos. É certificado pela WSET — Wine & Spirit Education Trust, nível 3, e FWS — French Wine Schollar.
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