Publicado em: 14 de janeiro de 2022 às 15:50
Atualizado em: 15 de janeiro de 2022 às 05:58
Não são poucos os que me perguntam sobre o vinho de missa. O primeiro contato com ele foi quando era criança. Calma! Não fui coroinha e muito menos assaltei a sacristia. Meus pais eram amigos do querido Padre Walter. Holandês, alto, rechonchudo e corado. Vestia-se com camisa branca, manga longa, paletó e chapéu pretos e apreciava charuto. Quando ele saia de minha casa, após uma visita, minha mãe abria bem as janelas e deixava a porta aberta para eliminar o odor da fumaça. Isso não era empecilho para a sua visita, a qual era disputada pelas famílias. Era época em que toda casa tinha um cinzeiro. Um, não: vários.
Certo dia de calor, acompanhei meu pai à Casa Paroquial. Não lembro o que conversaram, mas trago algo na memória. Mesmo sem o paletó, Pe. Walter transpirava muito e, em dado momento, ouviu-se palmas. O pároco atendeu a porta e recebeu uma enorme caixa, que hoje imagino ser vime. Já havia visto parecidas: as famosas Cestas de Natal Amaral. Mas o natal já havia passado. O entregador foi embora e meu pai foi convocado para segurar uma das alças da caixa e auxiliar a transportá-la para outro cômodo. Sem tirar o olho, acompanhei a caixa. O padre abriu como se fosse um porta joias. Em seu interior só vi aparas de madeira. Com delicadeza Pe. Walter localizou em meio à serragem quatro garrafões. Com um largo sorriso, disse: “É vinho para missa”. Meu pai, sem entender, perguntou: “É um vinho diferente?” “É especial.” Respondeu o padre, fixando em mim seus olhos azuis.
O que tem de especial o vinho utilizado na missa? Realmente, não é qualquer vinho que pode ser utilizado na missa, a qual é o ponto alto da manifestação de fé dos católicos e nesta, o ápice, é a consagração do pão e do vinho em Corpo e Sangue de Cristo: a Eucaristia. Exatamente em razão dele inúmeras ordens religiosas monásticas, séculos atrás, se dedicaram à viticultura e à produção de vinho para suprir o serviço religioso e esta foi a base das famosas regiões vinícolas da Europa.
A milenar Igreja Católica tem normas, o Código Canônico dispõe: “O vinho deve ser natural, do fruto da videira e não corrompido”. No Brasil o produtor deve pedir a benção, autorização, de um bispo para produzir tal vinho. O campeão em autorizações é o de Caxias do Sul, que conta em sua região com mais de trinta vinícolas que se dedicam à elaboração deste que é conhecido como Vinho Canônico.
Aqui, o vinho litúrgico costuma ser licoroso. Elaborado a partir de uvas de variedades não viníferas, como Bordô e Niágara, e viníferas, como a Moscato. São adocicados e possuem um teor alcoólico que pode chegar a 16%. Este álcool um pouco mais elevado auxilia na conservação, já que é consumido em pequenas porções em cada celebração. Curiosamente, ele pode ser envelhecido em tonéis de madeira.
Um dia perguntei ao Pe. Walter a razão pela qual ele não distribuía o vinho aos participantes da missa. Ele abaixou-se até a altura dos meus olhos e, com o seu largo sorriso, disse: “Dá muito trabalho”. Hoje, muitos bispos autorizam e até recomendam que nas celebrações dominicais a espécie do pão seja embebida parcialmente na espécie do vinho e colocada diretamente nos lábios dos fiéis. Mas, a pandemia suspendeu tal prática.
Qualquer um pode tomar o vinho de missa?
Essa pergunta é ambígua e necessita ser desmembrada. Para a fé católica, depois da consagração, embora os acidentes (elementos) tenham aparência e sabor de pão e de vinho, já não o são. Foram transformados em outra substância. É a chamada transubstanciação. Agora, são o Corpo e o Sangue de Cristo. Neste contexto, somente aqueles que vivem esta fé são convidados a recebê-lo.
E fora da missa? Qualquer um, maior de 18 anos, pode bebê-lo, trata-se de um vinho e nada mais.
Ficou com vontade? Basta ir até a casa paroquial mais próxima e pedir uma garrafa de Vinho Canônico. Se não estiver disponível para venda, indicarão onde encontrar.
Por Mauricio Azevedo Ferreira, Promotor de Justiça aposentado que transformou uma paixão em atividade, dedicando-se ao ensino sobre vinhos. É responsável pelo conteúdo da página no Facebook, do perfil no Instagram e do canal do YouTube Apaixonado por Vinhos, além de ministrar cursos. É certificado pela WSET — Wine & Spirit Education Trust, nível 3, e FWS — French Wine Schollar.
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