Publicado em: 16 de julho de 2022 às 02:32
Antigamente se chamava cego, ceguinho. Sua passagem pela rua podia causar compaixão ou despertar um gênio, como aconteceu a Nelson Rodrigues com quatro anos de idade ainda no Recife. Os cegos que não viviam confinados esmolavam no embarque e desembarque dos trens e dos ônibus, na porta da farmácia e da padaria, disputando espaço com os deficientes de alguma coisa ou de algum sentido, como hoje se convencionou chamar o coxo, o amputado, o aleijado, o pobre coitado que não tem onde cair morto.
Maria era morta da cintura para baixo e tinha uma cadeira de esmolar na porta do Luiz fumeiro, a menos de dez metros do Ermínio travado. Maria maltrapilha; Ermínio, banhadinho, tinha até um chapéu de feltro para receber os trocados por conta de andar com uns passinhos curtos, como se tivesse cagado achando que ia soltar um pum. Na calçada em frente à rodoviária eles ganhavam a vida – com mais facilidade quando não tinha um ceguinho esmolando por perto. Eu, descalço, engraxava sapatos cuidando para não sujar a meia do freguês.
Só fui reparar melhor nos deficientes visuais quando entrei para telecomunicações, no tempo em que a polícia ainda empregava telegrafistas – ótima oportunidade para um cego de sorte na vida. O Moacir, casado com uma loira escultural, mãe das duas filhinhas loiras do casal. O Chico Plaza, casado com a própria mãe até que a morte os separasse. Moacir tinha olhos de bolinha de gude, inchadas de azul; o Chico tinha as pálpebras afundadas no lugar onde Deus se esquecera de lhe fazer os olhos. Em comum, além da escuridão e uma bengalinha de dobrar, tinham o sorriso fora de hora dos cegos de verdade.
Airton, um cego que conheci muitos anos depois e mais intimamente, era quase um falso cego. Vacilou com um glaucoma que o foi deixou sem as vistas justamente quando estava entrando para a melhor idade. Fui seu guia inúmeras vezes entre o banco e o ponto de ônibus, entre a praça e o ponto de ônibus... Um dia eu o convidei para um churrasco na chácara da Zilda e fui buscá-lo na sua casa de cego, na Cohab. A casa de um cego que vive sozinho só tem as paredes e o telhado igual à nossa. Por dentro é como uma casinha de boneca, ou como a mansão de um novo rico sem aquelas coisas desnecessárias. O Airton é vegano desde o glaucoma, mas tinha aderido ao churrasco assim que lhe falei dos números de strip-tease, uma das ocupações das mulheres da casa. Na hora H, eu o posicionei sentado de frente para o palco e me ocupei relatando o que acontecia, como quem transmite um torneio de tênis pelo rádio: a descrição física da moça e da sua roupa de entrada, as peças que iam caindo e as partes que iam aparecendo. A um sinal meu, que só o Airton não percebia, elas vinham passar a mão na sua careca, sentar no seu colo.
Ontem tornei a encontrá-lo na calçada, guiado por uma mulata de metro. Não nos víamos há 17 anos, se é que posso dizer assim. Deu para ver que o tempo passa para um cego também – isso eu posso dizer. A mulata descomunal foi-se para os lados do calçadão e nós na direção do ponto de ônibus – ele se apoiando no meu braço direito, como antigamente. Sim, o Airton se lembrava de tudo, como eu. Rimos bastante e impunemente. Antes de embarcar, discretamente, Airton perguntou se a Zilda ainda fazia aqueles churrascos.
Cronista, mantém coluna no DEBATE desde 1977
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