Pascoalino S. Azords

Se eu escutasse o que mamãe dizia...

Quando, algum tempo depois, eu ouvi Caymmi cantando “Ah! Se eu escutasse o que mamãe dizia...”, eu já tinha me esquecido do acidente

Se eu escutasse o que mamãe dizia...

Publicado em: 21 de janeiro de 2022 às 17:57
Atualizado em: 22 de janeiro de 2022 às 04:58

Essa não deve ser a melhor forma de começar uma história, mas, foi em Curitiba, há 50 anos, que eu tomei o melhor sorvete de morangos da minha vida – talvez o único de verdade. Deve ter sido num fim de semana prolongado, pois do contrário não daria para ir tão longe. Chovia forte pouco antes da partida, e tinha chovido o dia inteiro. Como teríamos 30 quilômetros de terra até trocar de ônibus em Fernandópolis, onde começava o asfalto que ia dar em São Paulo, minha mãe implorava que meu pai adiasse a viagem para o primeiro ônibus do dia seguinte. Na manhã do dia seguinte nós já estaríamos deixando São Paulo para trás, ele deve ter respondido, e assim fomos, meu pai e eu, naquela jardineira dançando na estrada de barro. A água caía com raiva, com raios e trovões. Parecia filme de terror.

Meu tio Genésio nos apresentou ao centro curitibano e eu pedi para meu pai comprar dois pares de luvas de boxes para ensinar meu irmão menor a apanhar num ringue que improvisávamos à sombra da mangueira do quintal, onde a gente brincava de cirquinho cobrando dois palitos de fósforo pelo ingresso.

Na antiga rodoviária de São Paulo o que mais me impressionou foi a escada rolante e o cheiro das bancas de revistas e jornais; o cheiro do papel, da tinta, ou das duas coisas juntas e em grande quantidade. Foi ao embarcar de volta em São Paulo que ouvimos pela primeira vez alguém mencionar o acidente. Ao longo da viagem fomos sendo informados do que tinha acontecido, o que hoje teria sido feito pelo celular dois ou três dias antes. (Naquele tempo, nenhum dos meus parentes tinha telefone). Quando chegamos à minha cidade, o dia amanhecia. Ao passar pelo local do acidente, o que tinha restado do ônibus ainda estava lá – deu para ver da janela.

De fato, a chuva que enchia minha mãe de medo tinha cessado na manhã seguinte. Em compensação, o motor do primeiro ônibus pra Fernandópolis apagou justamente sobre a linha do trem, num cruzamento em nível que ainda existe no Jardim Paraíso. O ônibus levava poucos passageiros, mas todos morreram no local, inclusive o motorista. Veio gente da cidade inteira para ver os corpos. O Baiano, que logo se tornaria meu amigo pra vida inteira, veio da Vila Maria, no outro extremo da cidade, e chegou a tempo de ver uma pessoa pendurada na cerca de arame farpado. Mais do que o fato de termos (eu e meu pai) escapado com vida, só porque ele não ouviu os conselhos da minha mãe, o que mais me impressionava naquela tragédia era o fato de entre os mortos se acharem uns noivos que tinham se casado na véspera. Muito jovens, coitados, acabaram protagonizando a mais curta viagem de lua-de-mel de que tenho notícia. Foi neles que eu passei um bom tempo pensando, me fazendo as perguntas que um menino de 10 anos pode fazer sobre o casamento. Quando, algum tempo depois, eu ouvi Caymmi cantando “Ah! Se eu escutasse o que mamãe dizia...”, eu já tinha me esquecido do acidente.

 

* Publicado em 22/10/2017 e republicado em 23/01/2022


Pascoalino S. Azords

Pascoalino S. Azords

Cronista, mantém coluna no DEBATE desde 1977


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