A nota de cinco mil réis, que estava no “Livro Ouro” cuidadosamente conservado por Roberto Gonzaga de Oliveira, neto de Pedro Sampaio
Publicado em: 13 de julho de 2023 às 22:44
Sérgio Fleury Moraes
O último grande levante armado no Brasil começou no dia 9 de julho de 1932, quando São Paulo se ergueu contra o governo de Getúlio Vargas. Na verdade, a tensão política começara em 1930, quando outra batalha derrubou o governo de Washington Luís, impediu a posse do eleito Júlio Prestes e colocou Vargas na presidência. São Paulo perdeu poder e Getúlio passou a nomear interventores de outros Estados para comandar os paulistas.
Incomodados, os paulistas passaram a exigir uma nova Constituição e a convocação de eleições. O movimento de insurreição cresceu e mobilizou fazendeiros, comerciantes, profissionais liberais e estudantes. No dia 23 de maio de 1932, a polícia de Vargas reprimiu com violência um ato político a favor das eleições, realizado no centro de São Paulo. O confronto resultou na morte de quatro estudantes: Martins, Miragaia, Dráusio e Camargo.
Surgia, então, inicialmente clandestino, o “Movimento MMDC” que culminou com a explosão da revolução armada no dia 9 de julho de 1932. A imprensa na época também ajudou a mobilizar a sociedade paulista e mais de 200 mil voluntários se apresentaram, sendo 60 mil combatentes. Vargas, por sua vez, convocou as tropas federais para anular a ofensiva paulista.
Neste cenário de guerra, a participação de toda a região foi importante. Em Chavantes, os rebeldes paulistas impediram durante várias semanas que as tropas federais atravessassem o Paranapanema pela ponte pênsil “Alves de Lima”. Quando os gaúchos alcançaram Ribeirão Claro, os revolucionários dinamitaram a ponte para retardar o avanço das tropas de Getúlio Vargas.
Em Santa Cruz do Rio Pardo, a mobilização da população foi total. Os voluntários se alistavam no coreto da atual praça Leônidas Camarinha. A cada novo combatente inscrito, a população aplaudia. Havia um orgulho em cada gesto de apoio à Revolução Constitucionalista.
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O comerciante Tertuliano Vieira da Silva, dono de uma agência de automóveis franceses na praça central de Santa Cruz, teve todos os veículos e peças “requisitados” pela revolução. “Meu pai não reclamou, pois achava que estava certo”, contou anos depois o professor Norival Vieira da Silva, que morreu em Ourinhos em 2015. Ele era filho de Tertuliano.
O prédio da agência foi transformado no “Rancho do Soldado”. O local funcionava dia e noite, com várias famílias de Santa Cruz costurando roupas, separando objetos e cozinhando para os soldados. O espaço também servia para tratamento de combatentes que chegavam a Santa Cruz do Rio Pardo com ferimentos. O médico do movimento era Pedro César Sampaio.
Anos mais tarde, o mesmo prédio do “Rancho do Soldado” seria transformado no “Bar Paulista”, comandado pela mesma família.

O interessante é que em 1932 houve também uma mobilização de mulheres pela causa constitucionalista. Uma unidade da organização “Cruz Azul” foi criada em Santa Cruz do Rio Pardo e responsável por angariar donativos, entre alimentos, materiais bélicos e dinheiro. Várias mulheres se uniram no movimento, como Antonieta Fortes Coelho, Lizuca Sampaio, Irene Barbosa dos Reis, Maria Apparecida Vieira Bueno e outras.
A tesoureira do movimento era Lizuca Sampaio, mulher do médico Pedro César Sampaio. Ela elaborou um “Livro de Ouro” que foi guardado pelo neto, Roberto Gonzaga de Oliveira. Em sua primeira página, com a data de 18 de agosto de 1932, “Dona” Lizuca escreveu: “Este livro é dedicado à “Entrada e Saída” de tudo o que for arrecadado pela Cruz Azul de Santa Cruz do Rio Pardo referente à tesouraria desta humanitária instituição”.

Em seguida, há páginas e páginas com o nome dos doadores e a quantia em dinheiro ou objeto doado. Capacete para proteger a cabeça dos soldados é o item que mais aparece na lista. Mas também há galinha, goiabada, milho, banha de porco, fardas, cigarros, feijão e até balas para fuzil.
Tudo foi anotado de forma manuscrita por Lizuca Sampaio, em caneta tinteiro. O “Livro de Ouro” está em boas condições de conservação, graças aos cuidados de Roberto Gonzaga de Oliveira.
Há famílias tradicionais entre os doadores, como Camarinha, Lorenzetti, Pinheiro Guimarães, Gonçalves, Rios, Sônego, Vidor, Peres, Camargo, Piedade, Catalano, Ramos, Carqueijo, Luchetti, Castanho, Santos, Ferreira e outras. Algumas empresas, como a “Agência Ford”, também contribuíram.
Outros, anônimos, omitiram o nome, mas fizeram questão de deixar uma mensagem. Numa das páginas, o livro transcreve a doação de “um sergipano que quer a vitória de São Paulo, que é a do Brasil”.
Foram vários os santa-cruzenses que participaram da Revolução Constitucionalista. Um deles foi o médico Abelardo Pinheiro Guimarães, que era aliado de Getúlio e rompeu com o presidente, filiando-se ao Partido Constitucionalista criado por Antônio Carlos Abreu Sodré.
Sodré, nascido em Santa Cruz e que já estava envolvido no ativismo estudantil em São Paulo havia alguns anos, foi um dos coordenadores do “Movimento MMDC”. Lutou contra tropas federais em Minas Gerais, na região da Mogiana e, depois, se exilou na Argentina. Mais tarde, foi eleito deputado federal.
Outro combatente foi o ex-prefeito José Osires Piedade, o “Biju”, que chegou à patente de tenente durante a Revolução Constitucionalista.
Em setembro de 1932, por iniciativa do médico Pedro César Sampaio, o “Santa Cruz Jornal” publicou a lista de todas as pessoas que doaram donativos ou dinheiro. Era uma prestação pública de contas sobre tudo o que foi arrecadado. No título da capa, a manchete: “A Cruz Azul agradece cada donativo, de per si, e espera que continue a grande obra de contribuição”.

O jornal publicou, ainda, uma página inteira sobre o “Rancho do Soldado”, iniciativa da família de Tertuliano Vieira da Silva e patrocinada pela “Cruz Azul”. Há relatos elogiosos de oficiais e soldados que passaram pelo “rancho” em busca de restabelecimento e tratamento. Um dos relatos é do padre Francisco Prum, de Palmital: “Visitei a Casa do Soldado de Santa Cruz do Rio Pardo e fiquei admirado. Viva São Paulo! Viva a Constituição”.
No meio do “Livro Ouro” está outra relíquia da Revolução Constitucionalista: uma nota de cinco mil réis, com a figura do bandeirante Domingos Jorge Velho. O dinheiro, entretanto, não é do governo federal, mas impresso e bancado por São Paulo.

Na verdade, o governador “aclamado” de São Paulo, Pedro de Toledo, decretou a autorização para imprimir as cédulas “paulistas” para substituir as disponibilidades dos bancos da capital e do interior. Como o governo Vargas deixou de enviar cédulas para o Estado revoltoso, era preciso imprimir dinheiro para continuar estimulando a produção paulista e deixar São Paulo o mais autossuficiente possível. Assim, foram produzidas notas de 5, 10, 20, 50, 100 e 200 mil réis.
Exemplares iguais à cédula que está com Roberto Gonzaga de Oliveira são oferecidos a colecionadores no mercado por até R$ 3 mil.
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Apesar do apoio popular, as tropas federais romperam o certo em Itararé e avançaram por São Paulo. Como a ponte em Chavantes estava segura com a guarnição paulista, as tropas federais atravessaram o Paranapanema em Salto Grande, com pontes improvisadas e várias balsas. Diante do avanço, os constitucionalistas que estavam em Ourinhos e Chavantes recuaram para Santa Cruz do Rio Pardo, onde tentaram resistir até o fim do conflito. A cidade, entretanto, também foi dominada pelas tropas federais.
Roberto Gonzaga de Oliveira disse que o avô se lembrava de um parente, de nome Constantino, que estava na ponte de Chavantes defendendo os revolucionários. “Era um civil, mas pegou em armas por São Paulo. Ele estava entrincheirado na ponte de Chavantes, quando veio a notícia de que os federais romperam a barreira em Salto Grande. Ele voltou para Santa Cruz, pegou a família e correu para uma fazenda que pertencia a um grupo inglês. Trabalhou algumas semanas na lavoura, sabendo que os federais não entrariam numa propriedade que tinha uma enorme bandeira inglesa na entrada”, lembrou.
A Revolução Constitucionalista terminou em outubro de 1932, quando São Paulo se rendeu às tropas de Getúlio Vargas. O conflito deixou aproximadamente 1.000 mortos, praticamente o dobro de brasileiros que morreram na Segunda Guerra Mundial. Somente no Obelisco do Parque Ibirapuera, construído na capital em homenagem aos constitucionalistas que participaram da guerra civil, estão as cinzas de 713 combatentes.
Apesar da derrota, São Paulo conseguiu do governo federal a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte, a reabertura do Congresso Nacional e o livre funcionamento dos partidos políticos. Além disso, Getúlio Vargas concordou em nomear como interventor — cargo equivalente a governador — um paulista nato.
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