Publicado em: 31 de agosto de 2020 às 14:40
Atualizado em: 29 de março de 2021 às 21:02
O imponderável Shi Liliang
Pascoalino S. Azords
O improvável leitor desta coluna é testemunha de que neste espaço pouco se fala do cotidiano. Não quero competir com aquele tipo de marido que é incapaz de trocar uma lâmpada na própria casa, mas, em compensação, anima festas e almoços dominicais criticando o ministro da Fazenda, o presidente da República e (se o churrasco se alongar) falando mal até dos eletricistas da cidade. Deixo a difícil tarefa de refletir sobre as coisas importantes que acontecem no mundo para jornalistas que se viram em dois ou três idiomas, articulistas que conhecem os quatro cantos do mundo ganhando entre 1.200 e 200.000 reais, por mês, segundo o Novo Guia das Profissões da revista Veja.
O solidário leitor (leitor solitário tinha o Carlos Zéfiro) sabe que se o mundo pegar fogo eu estarei aqui, religiosamente, aos domingos, tentando me lembrar como era mesmo a Rua Elizabete, o que tinha no quintal dos Mussato, quantas vezes fomos aguar o pé do cruzeiro do velho cemitério na esperança de fazer chover... Essas inutilidades passadas.
Fatos relevantes inspiram crônicas em todas as mídias. Uma eleição presidencial nos Estados Unidos, o paredão do Big Brother, a escolha da sede da próxima Copa, o lançamento de um novo filme apocalíptico... Isso tudo alimenta a pauta da pequena, média e grande imprensa. Textos curtos ou longos, burros ou inteligentes, que estarão embrulhando carne na semana seguinte. Muito a contra gosto eu abordo um assunto mundano nas minhas crônicas. São os meus milímetros de informação, as minhas gotinhas de conhecimento que haverão de deixar o leitor pensando se, afinal, eu sou ou não sou um alienado de quatro patas?
Há pouco, li sobre um fato que me tirou por algumas horas da Rua Elizabete: o monge budista Shi Liliang, de 33 anos de idade, que percorreu uma distância de 18 metros sobre as águas usando seus conhecimentos em artes marciais. Os descrentes dirão que isso só poderia acontecer na China, onde, desde a construção da Grande Muralha, tudo é possível. Mas eu vi a foto! Eu vi Shi Liliang não pisando em brasas, não pisando em nada, ligeiro e leve como um frango d´água de um dia. Tão ligeiro que não teve tempo de afundar no percurso de 18m (dezoito metros, por extenso, como quem preenche um cheque). A marca anterior do imponderável Shi Liliang era 15 metros.
Muito mais interessante do que premiar os melhores atletas do mundo na prática da esgrima ou do badminton (jogo de petecas), seria estimular a prática de andar sobre as águas. Suponhamos que Shi Liliang viesse ao Rio de Janeiro, em 2016, para estabelecer um novo recorde, acima dos 20 metros. E que a cada Olimpíada essa marca fosse superada, como acontece com as demais modalidades, sempre e sempre. No futuro, antes de caírem na banalidade, os passeios sobre as águas se tornariam uma opção às dispendiosas viagens turísticas pelo espaço. Seria a “volta por cima” dessa espécie que não consegue respeitar o que na Terra existe de mais precioso – infinitamente mais precioso do que o ouro, matéria prima de penduricalhos, objeto do desejo de pessoas de mau gosto. Ao invés de dar um melhor destino à água potável, ao invés de agradecer de joelhos cada copo de água, homens e mulheres em breve andariam sobre elas – doces ou salgadas. Para sensibilizar o Comitê Olímpico, poderíamos lembrar que há quase 2 mil anos, um judeu de 33 anos (a mesma idade de Shi Liliang) já praticava e ensinava esse esporte a homens de pouca fé no mar da Galiléia.
• Publicada em 13/12/2009 e repercutida em 24 de agosto de 2020
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