A costureira de 95 anos mostra fotos de filhos e netos e suas bonecas (Sérgio Fleury / DEBATE)
Publicado em: 19 de março de 2022 às 03:34
Sérgio Fleury Moraes
Ela faz almofadas, roupas, tapetes, vestidos adultos e de crianças e até maravilhosas bonecas de pano. A atividade é comum entre idosas, mas acontece que Nadir de Souza Silva está prestes a completar 96 anos. A moradora de Santa Cruz do Rio Pardo faz aniversário no Dia de São Pedro — 29 de junho — e tem uma disposição invejável para a idade. Mesmo assim, ainda toma uma cervejinha de vez em quando e não dispensa fumar um cachimbo.
Talvez o segredo da longevidade foram os muitos anos em que morou na zona rural de Santa Cruz. Primeiro com os pais, e depois com os dois maridos — Nadir se casou duas vezes e, aliás, com dois “Joaquins”. E enviuvou dos dois maridos.
Eram outros tempos, conta, quando os pais determinavam o casamento dos filhos. “Meu primeiro marido era companheiro das brincadeiras de criança e meu pai achou que eu deveria me casar. E pronto”, contou. Nadir subiu ao altar aos 15 anos.
Viúva, arrumou outro “Joaquim”. Do primeiro matrimônio, teve quatro filhos e mais três do segundo — três são falecidos. Hoje, além de costurar, se diz realizada com 17 netos e 15 bisnetos.
O curioso é que Nadir, mesmo apaixonada pela costura, era proibida pela mãe de usar a velha máquina acionada à mão. “Eu tinha o sonho de virar estilista de moda”, conta. A proibição, porém, não impediu a costureira de aprender o ofício. “Bastava ela sair para eu correr para a máquina de costura. E ia aprendendo muita coisa, olhando minha mãe costurar e mexendo na máquina na ausência dela”, lembra.
Nadir tinha oito anos de idade e morava numa propriedade do bairro rural de Ribeirão dos Cubas, nas imediações do distrito de Caporanga. Ainda criança, trabalhava na lavoura, inclusive arando a terra com um equipamento puxado por um cavalo. “Minhas mãos ficavam calejadas”, lembra.
As compras da família eram feitas em Caporanga. De vez em quando, o pai comprava ou consertava ferramentas na “vila”, como Santa Cruz era chamada. Aos dez anos, era Nadir quem arreava o cavalo e cavalgava até o distrito para buscar café para torrar. Para lavar a roupa, a água precisava ser buscada num riacho em baldes. A iluminação era a base de velas ou lampiões a querosene.
Quando se casou pela segunda vez, Nadir também morou numa chácara em São Sebastião, patrimônio que existia perto de Caporanga. Ela se lembra da igreja do local, hoje em ruínas, e cobra uma reforma. “É uma judiação estar tudo abandonado”, lamenta. A venda de São Sebastião pertencia ao comerciante Bernardino, irmão do segundo marido de Nadir.
Mas, ainda menina, ela sonhava mesmo é com a costura. Uma das irmãs mais velhas era “cúmplice” a ponto de comprar um pedaço de “chita” — um tecido de algodão — em Caporanga para que Nadir fizesse uma camisola, tudo sem a mãe saber. “Foi minha primeira costura”, disse.
Nadir, na verdade, sempre foi “autodidata” em tudo. Queria aprender a ler, mas nunca frequentou uma escola por causa do trabalho na roça. Um dia, a avó comentou o fato com a professora “Dona Filhinha” — mulher do médico Waldomiro Ferreira Neves. A professora, então, cedeu uma cartilha escolar para Nadir começar a aprender.
“Eu não via a hora de chegar o fim da tarde, quando começava a estudar. Só que minha irmã ficou com ciúmes, pois também não sabia ler, e escondeu a cartilha. Só encontramos depois de muito tempo, dentro do colchão”, contou. Coisas de crianças.
Mas Nadir aprendeu, decorando as sílabas. “Eu comecei a ler tudo, de caixote de compras a rótulos de latas”, conta. E, é claro, qualquer coisa relacionada à costura.
Até se casar aos 15 anos, a jovem só usava a máquina de costura da mãe às escondidas. Com a morte de uma tia do primeiro marido, finalmente Nadir “herdou” sua primeira máquina, também manual. Com o equipamento à sua frente, ela titubeou, provavelmente se lembrando da mãe. “Eu pensei: o que vou fazer agora?”, lembra.
Pois Nadir se trancou no quarto, pegou uns cortes de pano e fez sua primeira camisa para o marido. “Antigamente as partes da roupa eram todas separadas, o que era mais difícil. Era preciso costurar para unir todas as peças”, disse. O marido gostou e foi uma espécie de “libertação” da costureira.
Logo, costurava para toda a família. E não parou mais. Há um ano, Nadir passou a fazer bonecas artesanalmente. E mostrou toda a sua arte: as miniaturas têm dedos, sapatinhos e vestidos em cores exuberantes.
Nenhum produto é vendido. A costureira costuma presentear parentes — especialmente netos e bisnetos — com os objetos que produz. “A gente se inspira nela para seguir adiante. Com a memória dela e a disposição, minha avó é um exemplo para a família”, conta a neta Lidiane Rodrigues Magno, 38.
A filha Nidelce, 63, dorme com a mãe e reveza os cuidados com a outra irmã, Vanda, 67. “Mas acho que ela é quem cuida da gente”, brinca Nidelce. “Minha mãe é uma bênção, com uma saúde impecável. De vez em quando a gente ouve no rádio algum falecimento de pessoa com 95 anos e comenta que já estava na hora. Minha mãe ri, pois ela nem pensa nisso”, disse.
Vanda Maria Rodrigues Barreto, 67, é hoje a filha mais velha. “Ela é uma heroína”, diz sobre a mãe.
Nadir atravessou períodos marcantes da história brasileira, mas não se lembra, por exemplo, das épocas de guerra. “A gente não tinha muita informação e ficávamos na roça, longe da civilização e sem jornal. Mas eu me lembro do meu pai levando comida para uns homens escondidos no meio do mato”, disse. As filhas acreditam que o episódio aconteceu durante a Revolução de 1932.
Até pouco tempo atrás, Nadir ficava costurando até tarde da noite. Seu companheiro inseparável é um velho rádio AM e FM. “Eu adoro o programa do Dil Show (rádio Difusora). Não perco um”, afirmou.
Hoje, ela quase não costura à noite, mas permanece em sua máquina durante o dia, manuseando panos e fazendo suas bonecas. Sem perceber, Nadir acabou realizando o sonho de se transformar em estilista. Afinal, ela não procura modelos e nem sabe interagir com a internet. “É tudo da minha cabeça mesmo”, explica.
* Colaborou Toko Degaspari
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