SOCIEDADE

Calil Ali veio a Santa Cruz para escrever a própria história

Médico foi um dos fundadores da antiga maternidade e dedicou a vida à profissão

Calil Ali veio a Santa Cruz para escrever a própria história

Apaixonado pela medicina, Calil veio para Santa Cruz depois de formado e se orgulha de nunca ter deixado de atender um paciente

Publicado em: 22 de janeiro de 2022 às 04:18
Atualizado em: 22 de janeiro de 2022 às 05:11

André Fleury Moraes

Ele nasceu em Cedral, na região de São José do Rio Preto. Estudou Medicina no Rio de Janeiro, na antiga Faculdade Nacional de Medicina (hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro), criada ainda na época do império. Estava na capital brasileira quando Getúlio Vargas se suicidou e, embora não saísse à noite com frequência, garante que aproveitou seu período na cidade fluminense.

Aos 87 anos, Calil Ali já tem bagagem suficiente para dizer que, apesar do samba, do bossa-nova, da MPB e dos botequins cariocas, acertou em cheio ao firmar residência e trabalho em Santa Cruz do Rio Pardo.

Hoje aposentado, Calil é um dos médicos mais gabaritados e tradicionais da cidade — muito embora não tenha nascido no município que já foi a “Joia da Sorocabana”.

Natural de Cedral, que segundo ele mesmo define como “um bairro de Rio Preto”, Calil estudou na cidade vizinha até terminar o Ensino Médio, à época ainda conhecido como ginásio.

Diz que sua ida ao Rio de Janeiro para estudar foi natural. Segundo ele, era comum que estudantes de São José do Rio Preto fossem à capital carioca para ingressar no ensino superior — a Nacional de Medicina, em especial, era uma das universidades mais conceituadas do país àquela época.

Filho de imigrantes libaneses, ele não esconde que detesta ser chamado de “turco”, como acontece vez ou outra pelo imaginário popular. “Não somos. Pelo contrário, os turcos nos exploraram. O império turco-otomano nos levou à guerra”, critica. Seu pai veio ao Brasil ainda jovem com algumas libras esterlinas que a mãe dava aos filhos para, como lembra Calil, “ganhar a América”. O estímulo da avó aos pais do médico tinha motivo: um de seus filhos morreu na guerra quando defendia o Império Otomano.

O médico Calil Ali durante entrevista ao jornal

Com recursos em caixa, o pai de Calil desceu no Brasil e começou a trabalhar na lavoura. Mas não sentiu que sua vida melhorou e, então, resolveu aceitar uma oportunidade para ir à Argentina, onde um de seus irmãos morava. Mas também não se adaptou ao país — foi quando decidiu tentar a vida nos Estados Unidos.

Subiu no avião e, ao chegar no país norte-americano, não conseguiu passar no exame sanitário em função de um tracoma, doença nos olhos altamente contagiosa, já em estado avançado. A alternativa era inevitável: pegar um voo de volta, algo que seria oferecido gratuitamente pelos EUA. Resolveu voltar para o Líbano.

Como eram várias horas de viagem, o pai de Calil, ainda solteiro, fez escala na Grécia e, temendo a reação da mãe ao voltar sem dinheiro ao Líbano, foi desabafar com um padre. “Ele era muçulmano, mas o padre falava árabe e o acolheu”, explica o médico.

A longa conversa com o pároco deu resultados. Nada de retornar ao Líbano: o pai de Calil arrumou as malas e resolveu tentar a vida no Brasil — mas longe da lavoura. Ele queria mesmo era abrir um comércio, setor com que enfim conseguiu juntar dinheiro.

Já mais abastado, pôde ir ao Líbano visitar os familiares e decidir com quem se casaria. “Os árabes levam muito a sério a questão do casamento. A cultura é diferente. Meu pai pediu para minha avó arrumar uma noiva a ele”, explica Calil.

Segundo ele, eram cinco mulheres e seu pai escolheu a mais nova. “Vocês casaram por amor. Eu casei porque fui escolhida, mas depois o amor veio”, dizia a mãe do médico. O casal voltou ao Brasil e firmou residência em Cedral, onde nasceu o garoto que viria a ser médico anos depois.

Calil formou-se pela Nacional de Medicina em 1960. Ele era um jovem universitário focado nos estudos, mas admite que, por ter vivido nos anos dourados, vez ou outra frequentava alguns bailes da cidade que na época ainda era a capital do Brasil — Brasília só seria oficialmente inaugurada por Juscelino Kubitschek em 1960, quando o estudante viria a se formar.

De natureza humilde, porém, o trabalho tomava a maior parte do seu tempo. “Logo que cheguei no Rio arrumei um emprego no Hospital das Clínicas. Naquela época, mesmo estudantes novatos já davam plantão. Perdia os bailes, mas conseguia me manter com o dinheiro que recebia”, conta.

Calil morava próximo ao Palácio do Catete, antiga sede da Presidência da República. Ele se lembra com detalhes da manhã de 24 de agosto de 1954, quando acordou com um grande movimento na avenida próxima à sua casa.

Curioso, desceu às ruas e se deparou com um amontoado de gente estarrecida. Alguns choravam, outros seguravam cartazes, mas todos exibiam um sentimento de espanto. Naquela madrugada, Getúlio Vargas, então presidente do Brasil, havia se suicidado com um tiro no peito.

“Eram tempos de grande disputa política. Você tinha o Carlos Lacerda discursando contra Getúlio e vice-versa”.

Calil se profissionalizou antes mesmo da graduação. “Antes de me formar já vivia no hospital [das Clínicas] e tinha prática. Fazia cirurgias e outras coisas”, explica.

Em meados de 1960, um colega de faculdade chamado Carlos Magalhães voltava dos Estados Unidos um tanto desanimado. Ele havia embarcado para os EUA para aprender, mas lamentava que ninguém o deixou tocar em aparelhos cirúrgicos. “Só operava coelhos”, lembra, rindo.

Apesar da decepção com o país norte-americano, Magalhães, de família abastada, tinha contatos influentes. A convite do então deputado Leônidas Camarinha, viajou para Santa Cruz e recebeu a proposta de levar adiante um hospital que nem chegou a abrir as portas.

O médico Calil Ali e Delourdes com a filha Melina e a neta Lígia

“O Magalhães veio até mim e contou sobre o hospital. Disse que estavam procurando médicos e me convidou para fazer uma visita”, lembra Calil, que topou imediatamente.

Os dois levantaram e, ao passar pelo segundo andar do Hospital das Clínicas, encontraram ninguém menos do que Luiz Famadas, médico residente do departamento de hematologia do local. “Vou com vocês”, disse o doutor. Os três foram de ônibus até São Paulo, de onde saíram de trem até Bernardino de Campos para, somente então, pegar o ramal rumo à estação de Santa Cruz.

“Encontramos o Américo Pitol, que era o provedor do hospital. Ele nos deu a chave e entramos”, lembra. Eles se depararam com uma base montada para o hospital, mas ainda faltavam equipamentos. Na mesma época, o médico Paulo Corazza morava em Garça e foi convidado para trabalhar no hospital que acabara de ser reaberto. Aceitou e deu certo.

O local, então, virou a “Maternidade Maria Perpétua Piedade Gonçalves”, nome que homenageia a mãe do doador do terreno, um empresário cuja família era tradicional em Espírito Santo do Turvo, então distrito de Santa Cruz. Ele doou uma boa quantia na época para terminar os reparos no imóvel.

A instituição cresceu e, com ela, veio a credibilidade. A Maternidade foi pioneira na região ao adquirir um equipamento raro que salvou a vida de centenas — talvez milhares — de bebês. O método detectava se o recém-nascido terá alguma incompatibilidade materno-fetal e, através do cordão umbilical, faz-se uma transfusão de sangue.O procedimento chama-se exsanguineotransfusão.

Muitos médicos passaram por ali, alguns deles permaneceram em Santa Cruz e outros alçaram voos mais altos, como é o caso de Doreto Campanari, o oftalmologista que se elegeu deputado constituinte em 1986.

A instituição deu à luz muita gente — vários deles ainda na memória de Calil, que não esconde o orgulho de ter implementado na maternidade um projeto que atendia gratuitamente pacientes de baixa renda. “Se pudesse, pagava. Se não, tudo bem. Eu nunca deixei de atender alguém”, diz.

Um caso em particular marcou a carreira de Calil. Uma criança nasceu com complicações e precisou ser operada. Mas o quadro se agravou e o médico, convocado, constatou que a solução estava num hospital de maior complexidade e ligou na hora para um hospital de São José do Rio Preto. Ele acompanhou toda a viagem do garoto, que morava em Caporanga. A criança saiu viva da operação. “Tomara que esteja feliz hoje”, diz.

Sempre discreto, Calil guardou consigo um conselho de Américo Pitol quando chegou a Santa Cruz. “Não se envolva em política”, disse o empresário na época. Dito e feito: ele perdeu as contas de quantas vezes foi sondado para disputar cargos eletivos, inclusive prefeito, mas nunca aceitou.

Hoje aposentado, Calil é casado com Delourdes Andrade Ali, com quem vive há mais de cinco décadas. “Pedi a mão da Delourdes ao pai dela. Era uma época diferente”, lembra. O casal tem três filhas.

Calil e Delourdes carregam um interesse em particular: a adoração pela arte. A casa onde vivem, dotada de uma arquitetura moderna, é repleta de quadros, estátuas e outros artefatos. Logo na entrada há uma pintura que remete a Dom Quixote.

O detalhe: a maioria dos quadros — se não todos eles — foi feito à mão por Delourdes, que cursou a Escola de Belas Artes de Campinas. 

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