Argentino Montagnoli em sua residência, com a cadeira de barbeiro que é mais velha do que ele, provavelmente com mais de 100 anos
Publicado em: 04 de abril de 2023 às 14:15
Sérgio Fleury Moraes
Provavelmente o barbeiro mais longevo da história de Santa Cruz do Rio Pardo, Argentino Montagnoli tem uma impressionante vitalidade para seus quase 92 anos. Ele caminha 20 quilômetros durante toda semana, pratica pilates outros dois dias e ainda dirige seu automóvel pelas ruas de Santa Cruz. Mas é a memória afiada que faz Argentino revelar o que ouvia no agitado salão de barbearia durante a época política dos “vermelhos e azuis”.
Montagnoli, que muita gente imaginava ser argentino de nascimento, veio da cidade de Cachoeiro do Itapemirim/SC para Cerqueira César. “Meu pai realmente morou na Argentina, mas eu só sou argentino no nome”, brincou.
Ele nunca abandonou a profissão e garante que jamais o fará enquanto tiver saúde. Há pouco tempo, deixou seu salão na rua Regente Feijó por discordar de um brutal reajuste no aluguel. Desde então, levou sua cadeira centenária para casa, onde continua a atender alguns clientes antigos. Um deles cortou o cabelo na semana passada – o usineiro Luizito Quagliato, de Ourinhos.
Naqueles tempos, um bom salão de barbeiro tinha um movimento impressionante, desde as primeiras horas da manhã até à noite. Em Santa Cruz, o maior deles era o de Narciso Perin, que ficava quase na esquina onde hoje está a agência do Santander. Havia, porém, uma cadeira vaga.
Foi aí que a história dos irmãos Montagnoli na cidade começou com um cabelo e uma barba bem feitos. Narciso Perin procurava um barbeiro experiente e, num certo dia, encontrou um amigo com a barba e o cabelo impecáveis. “Cortei em Batista Botelho”, avisou o amigo, referindo-se ao salão de Carlos Montagnoli, irmão de Argentino, no distrito de Óleo.
Na mesma hora, Narciso pegou um táxi e rumou para Batista Botelho atrás do irmão de Argentino. “Meu irmão tinha um salão muito movimentado e relutou em deixar o lugar. Fui eu quem o incentivou, lembrando que ele tinha filhos e deveria pensar no futuro”, lembra o barbeiro.
Argentino, inclusive, veio a Santa Cruz junto com o irmão Carlos. “Era um domingo e o salão do Narciso estava lotado. O dono ficou tão entusiasmado que começou a apresentar meu irmão para todos, dizendo que aquele era um barbeiro típico de Hollywood. E ele era realmente um craque”, contou. Argentino o advertiu para conversarem logo porque ainda precisariam pegar o trem no final da tarde.
Carlos Montagnoli mudou-se com a família para Santa Cruz. Quatro meses depois, Narciso informou que iria se transferir para São Paulo e arrendaria o salão. Argentino também se interessou, mas houve uma condição: um contrato registrado no cartório de Juvenal Dias no qual Narciso Perin se comprometia a não abrir outro salão no período de um ano.
Narciso nunca mais abriu um salão na cidade. Em São Paulo, foi dono de uma barbearia na famosa rua Augusta e se deu bem. Tão bem que resolveu vender o imóvel em Santa Cruz do Rio Pardo. Por sorte, o novo proprietário também impôs uma condição: que os irmãos Montagnoli continuassem com o salão.
E durante mais de 20 anos, os irmãos, juntamente com o barbeiro Zé Bigode, trabalharam dia e noite naquela esquina, inclusive nas manhãs de domingo. Contando com o período de Narciso, foram quase 40 anos no mesmo lugar. “À noite, a gente aguardava o fim da primeira sessão do cinema, quando lotava a barbearia”, lembra Argentino.
Mas o antigo Banespa (hoje Santander) foi o “acidente” no meio do percurso. O banco comprou o prédio para ampliar a agência. “O advogado do banco nos procurou, pois tínhamos preferência na compra e queríamos realmente ficar com o prédio. Mas o Banespa ofereceu o triplo do valor real. Não deu para nós”, contou Argentino.
O salão continuou na rua Conselheiro Dantas, mas em outros imóveis. Depois, foi para a rua Euclides da Cunha e, por último, na Regente Feijó. Carlos se aposentou e morreu há alguns anos. Argentino, viúvo há seis anos, seguiu sozinho e hoje trabalha em sua própria residência, na avenida Tiradentes. A velha cadeira com aproximadamente um século de idade o acompanha, com as marcas do desgaste no ferro feitas pelos pés dos clientes.
Ficaram, porém, as lembranças de uma barbearia movimentada e das indiscrições que Argentino Montagnoli quase sempre ouvia. Claro que casos familiares e de traição ele nem comenta. Mas a política era o tema dominante na época dos “vermelhos” e “azuis”, os dois grupos políticos entre as décadas de 1940 e 1970.
O barbeiro tinha amigos nos dois grupos. Ele se lembra, por exemplo, do rompimento político no grupo de Leônidas Camarinha em 1958. O deputado santa-cruzense era o grande líder de Santa Cruz e nunca havia perdido uma eleição desde 1947. Todavia, em 1958, devido a uma discussão entre correligionários na eleição para o governo de São Paulo, disputada entre Ademar de Barros e Carvalho Pinto, uma ala decidiu romper com Leônidas Camarinha.
Saíram nomes importantes, como Lúcio Casanova Neto, Onofre Rosa de Oliveira, Anísio Zacura, Reynaldo Zanoni e outros. A princípio, eles fundariam um novo partido. No entanto, avançaram as articulações para uma união com o grupo da UDN, formado por José Osiris Piedade (o “Biju”), Alziro Souza Santos, Fernando Santos e outros.
Em meados de 1959, Fernando Santos cortava seu cabelo com Argentino Montagnoli, quando entraram no salão Lúcio Casanova, Onofre Rosa, Anísio Zacura e Aquino Rosso. “O Lúcio comunicou ao Fernando que precisava do aval dele para acertar a união com a UDN. Os candidatos seriam Onofre Rosa para prefeito e Anísio para vice”, contou.
Segundo Argentino, Fernando quase pulou da cadeira. “Ele ficou furioso e disse que não aceitava a fusão. Disse, inclusive, que iria lançar um candidato próprio para fazer frente à possível união”, disse.
Minutos depois, Fernando se acalmou e disse que concordaria, desde que indicasse o vice. “O Lúcio aceitou e o Fernando disse que queria um companheiro na chapa, indicando o Biju. O Anísio aceitou e todos concordaram”, lembrou.
A chapa Onofre-Biju venceu as eleições por uma diferença de 1.318 votos, um recorde na época. Foi a primeira derrota do grupo de Leônidas Camarinha numa eleição municipal.
Argentino disse seu salão era um “termômetro” eleitoral. “Como se fosse uma pesquisa, a gente antecipava o resultado só pelas manifestações dos clientes. Nunca falhou”, garantiu. “De vez em quando o Lulu Camarinha me chamava na casa dele para perguntar como estava a eleição”.
Em 1963, por exemplo, Leônidas tinha como certa a eleição de Carlos Queiroz. “Eu fui franco e disse a ele que o Biju era o favorito, mas também expliquei que não sabia a situação da zona rural. O Carlos estava junto e zombou da minha avaliação. Eu respondi que ele deveria amassar muito barro nas propriedades rurais para vencer”, lembra.
No primeiro dia de apuração, o juiz eleitoral deu por encerrada a contagem de votos na área urbana, com a vitória de Biju por 290 votos. “O Nivaldo de Souza já saiu pelas ruas com uma caravana de automóveis buzinando e festejando. Mas o Idarilho Gonçalves, que também acompanhava a apuração no Fórum, afirmou que, com aquela diferença, o Carlos ainda seria eleito com os votos da zona rural”, contou.
Idarilho, inclusive, fechou uma aposta na hora com Reynaldo Zanoni, conhecido por Tufão. “Era um bom dinheiro”, lembra Argentino, que ficou encarregado de guardar o dinheiro. No dia seguinte, Carlos Queiroz tirou a diferença e venceu as eleições por 117 votos.
A mesma coisa aconteceu em 1968, quando todos imaginavam que José Carlos Camarinha venceria as eleições com folga. Mas as discussões no salão indicavam que Onofre seria o vencedor, como, de fato, ocorreu – e por apenas 62 votos. “Novamente eu alertei o Carlos Queiroz”, disse.
Naqueles tempos, nas eleições chegava gente que havia se mudado de Santa Cruz, mas não transferia o título. Eram ônibus e ônibus aparecendo na cidade nas eleições. “O Carlos se preparou para levar vários ônibus até Bernardino de Campos e aguardar eleitores. Eu avisei que os adversários, sabendo disso, iriam desembarcar os eleitores em Manduri, mas o Carlos não acreditou. O resultado é que os ônibus voltaram vazios de Bernardino”, lembra o barbeiro.
Em 1972 foi mais fácil, com a vitória de Joaquim Severino contra Marcílio Pinheiro Guimarães. “O Marcílio era cunhado dos quatro irmãos Quagliato. Praticamente a família inteira apoiou Marcílio, menos o Luizito”, contou. “E dava para saber que os vermelhos seriam os vencedores”.
“O Joaquim foi um grande prefeito”, afirmou Argentino, que foi amigo do empresário a ponto de viajar no avião particular de Severino várias vezes. “Ele me convidava para ir a inaugurações de casas populares em Ribeirão Preto”, conta. A aeronave era um Sêneca bimotor com capacidade para sete pessoas.
Argentino tem saudades da época em que Santa Cruz do Rio Pardo tinha até aeroporto, com voos regulares para São Paulo e Presidente Prudente. “Era uma maravilha. A gente podia pegar o avião três vezes por semana. Tinha voos da Vasp de manhã para Presidente Prudente e à tarde para São Paulo”, lembra.
Montagnoli garante que não pretende se aposentar da profissão de barbeiro. “Vou até onde der”, afirmou.
* Colaborou Toko Degaspari
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