Uma das fotos do livro de Sodré mostra perspectiva da antiga Cadeia Pública, na atual praça Leônidas Camarinha — As fotos foram tratadas por Nelson Nunes Pereira Neto, da Visão Comunicação - Ourinhos
Publicado em: 24 de janeiro de 2023 às 18:25
Atualizado em: 25 de janeiro de 2023 às 14:20
Luiz Carlos Seixas
Especial para o DEBATE
Em 1973 a então estudante de Medicina da USP, Maria Luíza Andrade, doou à agência de Estatísticas de Santa Cruz um trabalho feito por L.C. Abreu Sodré, intitulado “Inspeção Sanitária de Santa Cruz do Rio Pardo – 1923”. Encontrei este exemplar único na biblioteca municipal em 1997. Com capa dura, o caderno era composto de 58 páginas, e o texto integral datilografado em azul e vermelho. Os gráficos todos feitos a mão, com tinta preta nanquim. Em dez folhas de papel cartão também encadernadas estavam coladas 21 fotos originais, em tom sépia, medindo 7,5 por 12 centímetros.
Diante da importância do achado, levei ao então prefeito Clóvis Guimarães Teixeira Coelho a ideia de se reeditar aquele trabalho, a fim de preservá-lo (o original já acusava as marcas dos 74 anos de existência) e oferecê-lo a outras bibliotecas, outros leitores.
“Um oferecimento da jovem Maria Luiza Andrade estudante de medicina na USP para a Agência de Estatística de Santa Cruz do Rio Pardo-SP. Em 19 de dezembro de 1973”. (Contém a assinatura de recebimento de Mário Martins, encarregado da Agência de Estatística de Santa Cruz)
Fiz uma cópia xerox do texto e levei o original a São Paulo para que as fotos fossem copiadas a laser, um trabalho que hoje pode ser feito em qualquer biboca ou sem sair de casa.

Copiei o texto, palavra por palavra, no meu computador, ao mesmo tempo em que esmiuçava o seu conteúdo. A primeira questão foi descobrir o nome completo do responsável pela obra, na capa abreviado às iniciais L.C., e ao termino do curto prefácio assinado apenas como “o auctor”.
Foi a centenária senhora Alda Nicolai quem me informou tratar-se de Luiz Costa, irmão de seu padrinho de casamento. “É Costa por parte de mãe”, ela me contou no casarão da Avenida Tiradentes, defronte a igreja matriz.


Na verdade, a irmandade chegava a doze, sendo que o caçula, Roberto, se tornaria governador de São Paulo, nomeado por Garrastazu Médici em 1967. O pai de Luiz, Francisco Sodré, foi o segundo prefeito da história de Santa Cruz do Rio Pardo (1902), homenageado por liderar a campanha pela construção do ramal ferroviário que ligava Santa Cruz aos trilhos da Sorocabana, em Bernardino de Campos, dando seu nome ao distrito de Sodrélia, situado bem no meio do caminho. Sua fazenda de café se chamava Santo Antonio (hoje, Santa Gema). Eram 450 alqueires a 7 quilômetros de Santa Cruz, no caminho para São Pedro do Turvo. “Abrigado na sua antiga sede de madeira, em companhia de meus irmãos e de uma penca de agregados, passei ali todas as férias da minha meninice e juventude, tanto as de julho quanto as do final do ano, que eram longas, três meses intermináveis”, conta Roberto Costa de Abreu Sodré na sua autobiografia de 400 páginas, “No espelho do tempo”.


Em carta a mim dirigida, o ex-governador informa que seu irmão Luiz nasceu em Santa Cruz a 02/01/1901, e ali fez os primeiros anos do curso primário, pois a família só viria a se mudar para São Paulo em 1908. Formado pela Faculdade de Medicina Pinheiros (depois, USP), faleceu aos 34 anos, vítima da tuberculose.
Depois de um breve histórico da sua cidade natal, a partir de 1872, Luiz começa a descrevê-la em detalhes como ela era 100 anos atrás. “A cidade é contornada pelo Rio Pardo a cujas margens se acha. Aqui o rio é bastante caudaloso pouco menos que o Tietê em São Paulo. Sobre elle se acham duas pontes. A cidade possue 4.000 habitantes que ocupam 800 prédios. Possue 41 ruas, 7 praças parque e jardim com coreto de música. Tem uma installação electrica regular distribuída por toda a zona urbana. Não tem exgotos — nem água encanada. As suas ruas não são calçadas, sem arborização, com sarjetas regularmente bem feitas e mal illuminadas, tendo algumas dellas sem focos electricos. São varridas somente em occasiões de solenidades religiosas ou recepções políticas”.

Eram quatro os hotéis da cidade, com corredores escuros, camas de arame e “cosinha sem condicções de hygiene”. Em um deles, a proprietária assegurou a Luiz que “cada vez que chega um hóspede, troca roupa de cama (não sei e não garanto) garanto que tem percevejos”.
Percorrendo a zona rural, Luiz anotou: “Estas casas nunca contem fossas fixas. As exonerações intestinaes são feitas na superfície do solo”.
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“Muito bem situado, no alto da cidade em belíssimo largo, o Grupo de Santa Cruz é o mais bello edifício da cidade, beleza sobre todos os pontos de vista, até hygiêncio, porquanto fora a cadeia é o único prédio que tem uma rede de exgotto e água encanada (...) O critério para a colocação dos alumnos é mixto. Desde que o alumno manifeste que não enxerga bem ou escuta pouco, é logo mandado sentar a frente”.

As fossas negras no entorno do chafariz que abastecia a cidade, o leite vendido em garrafas tapadas com rolha ou palha de milho, machinas de beneficiar arroz, torrefação de café, fábricas de bebidas, gazozas, refrescos, cognac, matadouro à beira do rio, açougues (eram cinco) onde carnes ficavam expostas à poeira, a cadeia na praça central e um cemitério “mal cuidado, onde tive ocasião de ver uma enxurrada pretendendo desenterrar os mortos”, completavam o cenário. O lixo urbano era recolhido em duas carroças. Uma aberta levava o lixo sólido até os terrenos baldios próximos da Santa Casa, outra com grandes pipas recolhia as águas de lavagem destinadas ao Rio Pardo.


Há 100 anos Santa Cruz tinha cinco farmácias, quatro médicos e uma santa casa que em três anos atendeu “733 doentes até hoje”. São três os gráficos feitos a mão pelo autor com dados de 1911 a 1921 sobre mortalidade geral, nupcialidade e natalidade no município que à época contava 35.000 habitantes. Há inúmeras análises da água consumida, porém, o leite deixou de ser estudado porque a viagem a São Paulo levava 18 horas pela estrada de ferro, o que inviabilizava as análises.
Luiz Costa de Abreu Sodré, o primeiro santa-cruzense a estudar à luz da Ciência a sua cidade natal, conclui seu tratado com três frases curtas:
1 - O estado sanitário de Santa Cruz do Rio Pardo não corre paralelamente ao seu progresso material.
2 - A municipalidade deve, como preocupação máxima e de urgência, prover a construção de rede de água e exgotos.
3 - Solucionado este, Santa Cruz tornará uma boa cidade.
-oOo-
* Luiz Carlos Seixas é colaborador do DEBATE desde a sua fundação, em 1977. Como editor, publicou “Memórias de São Pedro do Turvo”, de Tereza Costa da Cunha; “No Celeiro da Memória”, “Na Garupa da Memória”, ambos de Geraldo Machado; “Contos e Causos (2ª edição)”, de Wilson Gonçalves; “Jales – precursores e pioneiros”, e “Jales – até a instalação da Comarca”, de Genésio Mendes de Seixas; “Jales” de Armando Pereira. Dirigiu os documentários “Ourinhos de 1988” e “A Banda do Seu Américo”. Tem três livros não lançados contendo crônicas escolhidas das 500 que publicou semanalmente no DEBATE, entre 1998 e 2019. Poeta premiado pelo Sesc de São Paulo. Como compositor, é parceiro de Toninho Breves, Mutinho, Rui Alvin, Luís Felipe Gama,Toquinho, Maurício Carrilho e Cristóvão Bastos.
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