Tivé, proprietário da Casa Garcia, ao lado da mulher Ana Maria
Publicado em: 18 de fevereiro de 2022 às 23:28
Atualizado em: 18 de fevereiro de 2022 às 23:33
Sérgio Fleury Moraes
Uma das lojas mais antigas de Santa Cruz do Rio Pardo, a Casa Garcia vai fechar. A decisão do atual proprietário, Francisco José Wolf Santos, o “Tivé”, 71, foi até bem recebida pela família, uma vez que a loja estava operando no vermelho já há algum tempo. “Tudo tem um ciclo. Acho que o da Casa Garcia terminou”, diz “Tivé”, não escondendo as lágrimas.
Ainda não há um prazo definido para o fim das atividades, mas deve acontecer assim que o estoque estiver bastante reduzido. Até lá, o clima é de “fim de feira”, inclusive com produtos em liquidação. A “Casa Garcia Presentes”, que funciona ao lado em outro ramo de atividade, vai continuar funcionando.
Segundo o proprietário, o fechamento tem várias causas que levaram a prejuízos constantes, sempre cobertos pelas reservas da própria família. Primeiro, o “calçadão” da rua Conselheiro Dantas, inaugurado no início de 2012 pela ex-prefeita Maura Macieirinha. A obra beneficiou o comércio em geral, mas prejudicou a Casa Garcia por ser uma loja de ferragens e material pesado. “As pessoas que transitem pelo calçadão estão interessadas em comprar roupas ou calçados. Então, o movimento para o nosso ramo diminuiu muito”, avalia Tivé.
Depois, veio a cobrança da “área azul”, dificultando o estacionamento no coração do “calçadão”, onde a loja existe há 90 anos no mesmo lugar. A pandemia, que provocou falta de materiais disponíveis, foi o golpe final. Os clientes foram sumindo.
O êxodo rural também foi outro motivo, em razão da “idade avançada” da Casa Garcia. Ele se acentuou entre as décadas de 1970 e 1980, quando quase 40% dos moradores da zona rural abandonaram o campo. A loja tinha uma tradição de sitiantes e fazendeiros entre os clientes, que lotavam suas dependências principalmente aos sábados. Tinha até música, pois a Casa Garcia vendia violão, acordeon, pandeiro, reco-reco e castanhola. “O pessoal pegava a sanfona e ficava até o final da tarde, sempre com uma garrafa ao lado”, lembra Tivé.
Nos tempos áureos da lavoura movimentada, as vendas eram grandes. “Para se ter uma ideia, o pessoal comprava caixas de parafusos e arame. Hoje, o cliente pede 10 parafusos, quando muito”, contou. “Eu já vendi 2.000 rolos de arame para um único cliente”, lembra.
Tivé disse que a decisão de fechar foi amadurecida durante anos, até que chegou o momento. “Na pandemia, teve dia em que atendemos quatro clientes, o que evidenciou a necessidade de paralisação das atividades. Se a gente pudesse prever o futuro, a loja tinha mudado de endereço há muitos anos. Agora não dá mais”, disse.
Claro que também contribuiu para a decisão um AVC que “Tivé” sofreu há três anos. Foi um grande susto e nove dias de internação no hospital Alberto Einstein, em São Paulo. O comerciante já se recuperou, mas precisa evitar emoções.
Quem entra na nonagenária loja de Santa Cruz do Rio Pardo percebe o clima de nostalgia. A balança Filizola, moedores de café ou carne e filtros de barro são apenas o cartão de visita. Nas gavetas, ainda é possível encontrar à venda válvulas para rádios antigos, fitas K7 de gravadores, chapéu, botas e tudo o mais que se relaciona ao passado.
A Casa Garcia tinha a fama de “tem tudo”. Antigamente, quando um cliente não encontrava algum produto, o dono anotava e logo ele estava na prateleira. “Demorava um pouco, claro, pois a mercadoria chegava de trem em Bernardino e, em seguida, pegava o ramal para Santa Cruz ou vinha de caminhão”, contou Tivé.
As mudanças tecnológicas também atrapalharam os pioneiros. Em 1976, por exemplo, Tivé se lembra de o sogro comprando 300 sapatas de escovão. Porém, as enceradeiras e aspiradores de pó já começavam a dominar o mercado. “Até uns quatro ou cinco anos atrás, ainda tinha algumas daquelas sapatas no estoque”, conta Tivé.
A loja atravessou três gerações. Foi fundada em fevereiro de 1932 por Ginez Antonio Garcia Ascencio, o “Guiné”, para ser um açougue e logo em seguida um armazém de secos e molhados. Durou pouco nos primeiros ramos e logo se transformou numa grande loja de ferragens, motores e ferramentas. A família morava no fundo do enorme prédio da Conselheiro Dantas, mas a loja foi sendo ampliada e tomou a residência. Foram duas ou três grandes reformas, até que a casa foi “engolida”.
Com a aposentadoria do patriarca, assumiu o comando da loja o filho Ginez Garcia Fernandes, que também ganhou o apelido de “Guiné”. Anos depois, ele teve como parceiro de loja o genro Francisco José Wolf Santos, casado com a filha de Guiné, Ana Maria Valério Garcia Santos — que atualmente comanda a “Casa Garcia Presentes”. Guiné se aposentou e a loja ficou sob comando de “Tivé”. O patriarca da segunda geração morreu em 2000.
Francisco, aliás, cresceu no ramo comercial. O pai Benedito Santos foi o dono de um tradicional empório de secos e molhados na avenida Tiradentes, onde hoje é a “Regional das Tintas”. O tio, Waldomiro, tinha a tradicional “Loja dos Dois Merréis”, em frente ao atual Banco do Brasil. Os dois comércios não existem mais. “Eu nasci na casa ao lado do empório. Vim ao mundo pelas mãos da parteira Donana”, conta Tivé. “Naquele empório eu aprendi as primeiras lições do comércio”.
Ele não chegou a viver a época áurea dos primeiros empórios em Santa Cruz, onde se vendia de tudo, de arroz a gasolina ou querosene para iluminar as casas da zona rural. Mas uma tradição a Casa Garcia manteve durante décadas: o pagamento anual, geralmente na safra. As contas eram anotadas num livro ou caderneta e o sitiante pagava quando recebia o dinheiro da colheita.
Com tantos anos de existência, foram muitos os funcionários que se aposentaram após décadas de trabalho na Casa Garcia. Um dos mais conhecidos de sua história foi Polidoro Monteiro, o “Dolla”, que cuidava da venda de rádios e válvulas. Ele tinha até uma pequena oficina nos fundos da loja.
O mais “recente” é Valdemir Chagas de Abreu, 60, há 46 anos atrás do balcão da Casa Garcia. Foi o segundo emprego dele na vida, contratado pelo antigo dono, Ginez Garcia Fernandes. Além do proprietário, Valdemir aprendeu muito sobre ferramentas e eletricidade com “Dolla” e passou a ser aquele que sabe onde estão os produtos estocados. Afinal, havia milhares de ítens à venda.
Casado e pai de uma filha, ele ainda não sabe o que vai fazer depois do fechamento da loja. “A gente sabia que um dia isto poderia acontecer. Mas foi uma dura surpresa. Afinal, passei mais tempo na loja do que dentro de casa”, disse.
Filha e neta dos pioneiros, Ana Maria Valera Garcia vai continuar com a “Casa Garcia Presentes” junto com Thaís, uma das três filhas. Mesmo triste com o fechamento, Ana diz que é necessário. “É hora do Tivé descansar um pouquinho e cuidar das terras arrendadas. Eu nasci na loja, mas tudo tem um ciclo”, afirmou.
* Colaborou Toko Degaspari
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