As mulheres que fazem parte da Fazenda ao lado dos colaboradores Pedro, Graça e Maria Renofio
Publicado em: 20 de março de 2021 às 01:04
Atualizado em: 30 de março de 2021 às 07:23
André Fleury Moraes
Uma rua estreita e até um pouco escondida no final do distrito de Sodrélia abriga Gabriela Alves da Silva. Ela nasceu na Bahia e é fruto de uma relação entre sua mãe, que se prostituía, e um cliente. Cresceu no prostíbulo e sofreu o primeiro abuso aos três anos.
Veio de um tio, dentro de casa, que tocava e seu corpo contra a sua vontade. Ainda criança, ela não conseguia entender o que acontecia. Vez ou outra, sua mãe tentava protegê-la dos toques indiscriminados de homens, mas a investida sempre era frustrada — e a mãe acabava apanhando.
Os abusos continuaram por longos anos com a conivência da família, que não questionava Gabriela sobre o motivo pelo qual ela chorava. Sem condições financeiras ou estruturais para cuidar da primogênita, Gabriela foi entregue a um orfanato de São Paulo quando tinha nove anos. “Minha mãe achava que ali eu receberia um melhor tratamento”, lembra.
Não deu certo e, pouco tempo depois, Gabriela foi estuprada por um funcionário do orfanato. Desesperada, decidiu fugir com duas amigas. Pulou o muro e caiu direto na praça da Sé, onde na época havia uma “cracolândia”. Seria a casa dela pelos próximos 10 anos.
Usava drogas e sucumbiu à prostituição, única alternativa de renda a uma garota de rua sem ninguém com quem pudesse contar. Ela percebia ser observada por um policial que patrulhava a Sé.
Aos 14 anos, este mesmo PM a colocou dentro de uma viatura, alegou que Gabriela portava drogas e a levou para um local desconhecido. “Fez de tudo comigo. E eu não aguentava mais, não tinha força nenhuma, então não resisti”, conta, chorando.
Pouco tempo depois, ela sentiu dores na barriga e descobriu que estava grávida. Foi um período árduo — ela chegou a cogitar o aborto. Pensava, afinal, que era o destino repetiria a história dela e de sua mãe.
A criança nasceu numa maternidade de amparo maternal, que acolhe moradores de rua, e Gabriela não viu o filho, fruto de um estupro. “Fugi no mesmo dia”, disse. Horas depois, estava novamente na Sé em busca de crack. Quando acendeu o cachimbo, sentiu que não queria mais aquilo para sua vida. “Veio um sentimento dizendo que eu não era mais capaz, que eu era um lixo, um monstro”. A droga, o sexo, nada mais a satisfazia.
Foi quando ouviu falar sobre a Fazenda da Esperança. Relutou a princípio — imaginava que seria mais uma clínica de reabilitação. Mas uma freira conseguiu tocar seu coração. “Ela segurou minha mão e disse que eu não era nada do que me julgavam”. Decidiu conhecer de perto a organização para a qual foi convidada.
A Fazenda da Esperança é uma entidade internacional católica fundada pelo frade franciscano Hans Stape e que hoje está presente em mais de 20 países recuperando dependentes químicos através da fé.
Ao ser enviado como sacerdote para uma paróquia do Brasil, frei Hans Stape começou sua obra na cidade de Guaratinguetá, seja implantando uma casa pioneira para mães solteiras e, mais tarde, libertando jovens do mundo das drogas. Ele transformou a instituição numa das mais respeitadas em todo o mundo.
A “Fazenda da Esperança” de Santa Cruz do Rio Pardo é uma unidade exclusiva para mulheres. Como em todas as outras, a pessoa precisa manifestar pessoalmente o interesse em mudar de vida. Assim, não basta ser encaminhada por uma família, pois precisa assinar uma carta de próprio punho.
Assim fez Gabriela 15 anos atrás. Ela foi designada a uma unidade em Guaratinguetá, onde passou pelos 12 meses de tratamento — período universal a todos aqueles que vão à Esperança. Foi na Fazenda que ela aprendeu a perdoar, fase mais difícil da mudança. Gabriela, enfim, começou a ter uma vida feliz e produtiva.
“Ali eu aprendi que os dependentes batem e até matam, mas que por trás de cada um deles existe um Jesus machucado”, conta. Gabriela percebeu a mudança quando, durante a recuperação, conseguiu diferenciar pela primira vez o cheiro do esgoto e de feijão. Decidiu, então, que não sairia mais da organização e se tornou uma missionária voluntária, função que ocupa até hoje. Foi na Fazenda, por exemplo, que Gabriela aprendeu a ler e escrever.
Desde então, foi a vários países para ajudar outras unidades da Fazenda da Esperança. Inclusive, esteve na África. Há pouco mais de um ano, veio parar em Santa Cruz do Rio Pardo, no pequeno distrito de Sodrélia, onde há uma sede da organização desde 2012. No Estado de São Paulo existem outras três — uma delas em Piraju para o atendimento de homens.
Em Sodrélia, o projeto foi idealizado pelo empresário Pedro Milton Pegorer em 2012. As obras foram concluídas em 2015. A construção da Fazenda em Sodrélia só foi possível porque houve apoio direto da diocese de Ourinhos. O terreno pertencia à igreja Católica, mas não era utilizado havia anos. Antigamente, ali funcionava um seminário.
O bispo Dom Salvador Paruzzo foi quem articulou as doações. Italiano, ele foi pessoalmente ao país europeu e apresentou o projeto da Fazenda da Esperança a seus superiores, que resolveram bancar toda a estrutura. Na época, foram 345 mil euros — hoje mais de R$ 2 milhões. Enfim, a esperança se tornou uma realidade.
Homens e mulheres não se misturam na organização. Em Sodrélia, por exemplo, são apenas mulheres. Quando são mães, os filhos estão autorizados a acompanhá-las nas outras unidades do Brasil, mas em Sodrélia eles foram recolhidos a mando do Ministério Público.
“Eles alegaram que, para acolher crianças, a Fazenda precisaria ter uma estrutura semelhante à Casa do Menor. Não é essa a nossa função. O estatuto não diz isso”, afirma. O caso foi levado, inclusive, ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, em Brasília. Titular da pasta, a ministra Damares Alves chegou a visitar uma unidade da Fazenda e chorou ao ver que crianças também são acolhidas — e bem tratadas — pela organização.
Pedro Milton Pegorer figura como presidente da organização em Sodrélia. Porém, ele não atua diretamente com os acolhidos pela Fazenda — seu papel é manter a entidade equilibrada financeiramente e não deixar que faltem recursos e nem suprimentos.
“Nós não interferimos na recuperação das mulheres”, afirma. A responsável pelo dia a dia da instituição, aliás, é a missionária Gabriela.
A unidade sobrevive através de voluntários — que, aliás, estão em falta. A arrecadação vem de doações e vendas dos produtos que as próprias mulheres da Fazenda produzem — como pães, biscoitos e bolos. O dinheiro serve para manutenção interna das necessidades da Fazenda, como pagamento de contas e aquisição de produtos básicos.
O trabalho da Fazenda não é propriamente a redução de danos, como acontece nas atuações dos Caps, por exemplo, mas de mudança de vida. “A gente busca a virtude através da espiritualidade”, explica a missionária.
A maioria das mulheres que hoje estão na Fazenda — ao todo são 23 — não é de Santa Cruz do Rio Pardo. A instituição recebe pessoas do Brasil todo, muitas da cidade e região.
Mas também há santa-cruzenses trabalhando na administração. Uma dessas voluntárias é Maria Helena Renofio, que dá aulas de catecismo às mulheres da fazenda. Ela já era catequista no Santuário Nossa Senhora de Fátima e admite que sempre teve vocação para ensinar religião.
Sua colega de trabalho, por sinal, também é de Santa Cruz do Rio Pardo. Graça Pimentel, viúva do professor Eduardo Pimentel, vai toda semana a Sodrélia para ajudar no cotidiano da Fazenda. “Vim aqui por providência divina”, diz Graça.
Ela conta que conheceu o local por acaso. Seu marido Eduardo tinha dores no joelho constantes, e o casal resolveu buscar também ajuda espiritual. Enfim, conheceram uma carmelita — freira da Ordem do Carmo — que morava em Sodrélia. Sua casa, por sinal, ficava em frente à Fazenda da Esperança.
“Quando ele foi fazer um procedimento com a carmelita eu saí da casa e andei pela rua. Subi e vi uma horta, mas notei que ela estava muito pequena. Resolvi mexer”, lembra Graça.
O casal mantinha uma tradição de não presentear um ao outro – cada um escolhia o que quisesse — em aniversários e festas. Quando os dois completaram as “Bodas de Ouro”, Eduardo disse a ela que queria presenteá-la. “Então me deixa ir à Fazenda para ajudar”, respondeu Graça.
Desde então, a mudança no terreno é visível. Graça ampliou a horta, ajudou no plantio de mandioca e levou galinhas para o local também. As mulheres da Fazenda também colocam a mão na massa.
Existe uma hierarquia dentro da Fazenda e ela é respeitada por todas as mulheres. Os primeiros meses são de recuperação de antigos problemas, como vícios, e a visita de familiares só é permitida após um processo de desintoxicação. Em contrapartida, se uma delas quiser ir embora, não há empecilhos.
Todas ficam abrigadas em duas casas. A primeira é para as mulheres recém-chegadas. A outra, por sua vez, é reservada àquelas que já estão no local há mais tempo. Todos os quartos possuem nomes de impacto religioso, como perdão, amor e sabedoria. O ambiente impressiona, pois tudo é impecavelmente limpo e os móveis são todos de padrão nobre.
Uma das mulheres que estão na segunda casa é Letícia Aparecida Soares, 38. Ela nasceu em Itapetininga e é filha de um pai alcóolatra que abandonou a família. Letícia perdeu a mãe quando tinha apenas 14 anos. “Perdi meu chão”, diz. Começou a fumar crack quando tinha 16 anos, e aos 17 engravidou. O pai da criança foi preso pouco tempo depois, e ela deixou a criança para os familiares.
Nas ruas, começou a se prostituir e usava quase todo o dinheiro para comprar drogas. Foi essa a sua vida durante 20 anos. Mudou-se para Itatinga, onde passou por momentos difíceis. Foi estuprada, espancada e quase morreu cinco vezes.
Depois, fugiu com um rapaz e foi morar nas ruas de Campinas. Em 2017 foi presa. Depois da liberdade, viveu um relacionamento conturbado com outra pessoa. Espancamentos eram constantes. Certa vez, seu companheiro tentou incendiá-la depois de jogar álcool em seu corpo. Hoje, Letícia usa uma prótese na boca porque não tem mais dentes — eles caíram de tantos socos.
Letícia chegou a se internar numa clínica de reabilitação, mas sofreu várias recaídas. Seu irmão também é ex-usuário de drogas e soube da Fazenda da Esperança. “Ele me indicou e eu aceitei”, lembra. Ela escreveu uma carta e aguardou ser aceita na unidade de Sodrélia.
“No começo, como era evangélica, tive dificuldades de adaptação. Não entendia as imagens dos santos, por exemplo, mas logo senti um amor no coração e entendi as questões religiosas”, diz. Seu período como “resgatada” já terminou na fazenda, e Letícia decidiu se entregar à instituição como missionária. “A Esperança salvou minha vida. Nunca é tarde para recomeçar”, afirma.
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