Publicado em: 06 de dezembro de 2017 às 01:25
Atualizado em: 30 de março de 2021 às 08:32
Boca do lixo
Carlos Eduardo Gonçalves *
Notavelmente, quem me conhece sabe a admiração que tenho pela cidade de São Paulo, especialmente pela sua cultura. Nas biografias mais interessantes que li, a cidade de São Paulo sempre foi o palco de grandes histórias de vida e de grandes nomes que tanto nos influenciaram. Um deles, é João Rubinato, mais conhecido como Adoniran Barbosa. Quando caminho pela Ladeira Porto Geral, imagino que ali, em um quarto de pensão viveu esse grande nome da cultura paulistana e brasileira. Parece-me que ao andar por aquelas ruas, vejo no chão úmido os passos daquele gênio que nos brindou com letras, quase que desenhadas no imaginário popular. Descendo a ladeira, temos a famigerada Rua 25 de Março, que hoje é considerada um dos maiores centros de comércio popular do país. Fico encantado ao andar por ali, sabendo que Adoniran trilhou por alguns anos, o mesmo caminho até a loja de tecidos que trabalhava.
Não muito distante dali, a Estação da Luz remonta boa parte da história de muitas pessoas na megalópole. O coração ferroviário, tinha como artéria a Sorocabana. Muita gente migrou rumo ao “pogréssio” da “locomotiva do Brasil”, já poetizado por Adoniran. Ali, muitos sonhos foram alimentados.
Caminhando rente ao parque da Luz, é fácil avistar de longe um enorme prédio de tijolos à vista. Uma instituição que atualmente é dedicada à preservação de referências das memórias da resistência e da repressão políticas do Brasil republicano (1889 à atualidade). Durante o período de 1940 a 1983, o Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo – Deops/SP, fora ali sediado. Uma das polícias políticas mais truculentas do país, principalmente durante a ditadura militar de 64.
O contraste político é notório quando nos damos conta que logo ao lado, existiu um reduto do cinema independente, a Boca do Lixo. Dali saiu José Mojica (Zé do Caixão), Sganzerla dentre outros mestres da pornochanchada que encabeçam recordes de bilheteria no cinema nacional. Não vivi essa época do cinema. Não vivi a Boca do Lixo. Não importa, na história do cinema brasileiro ela é atemporal.
Em uma de minhas excursões à região da Luz e especificamente ao Memorial da Resistência, confesso, abandonei meus alunos. Não consegui permanecer na visita, por nojo, por repugnância a um regime podre, tal qual o militar. Saí, caminhei sob a marquise. Aquilo mais se parecia um dormitório de gente, corroídas pela chaga do prazer sintético. A boca do lixo (em minúsculo) era ali. Na verdade nua e crua, na acepção literal da palavra lixo. Pessoas residuais, descartáveis pelo poder público no que tange suas condições de bem estar, em contrapartida, muito bem lembradas quando atrapalham o andamento de certo setor da sociedade. Lembrei-me de quando visitara a marquise da Candelária, no Rio de Janeiro. O sentimento foi o mesmo. Uma angústia. Um deja-vù.
Pela primeira vez na vida, vi homens, mulheres e crianças consumidas pelo crack. Pela primeira vez, verifiquei um mundo doente. Pela primeira vez o cheiro da urina, das fezes, da fumaça, do cinza dos muros paulistanos e do vapor do barato, estiveram junto a mim. Uma sinfonia de emoções absolutamente desafinada. Engano seu, engano de João Dória, a cracolândia ainda resiste. Foi momentaneamente dissipada da Luz, mas em pouco tempo como a fênix, ela ressurgiu. E ressurgiu mais poderosa. Agora não só na Luz, mas nas trevas de todo canto daquela cidade. Não existe amor em SP, já dizia Criolo, atualíssimo.
Estar em São Paulo naquele dia, me fez crer que “os miseráveis não tem outro remédio a não ser a esperança”, parafraseando Shakespeare. Não há como não se solidarizar a ideia de que ali habitam seres humanos que dependem quimicamente do prazer da droga, e não delinquentes. Delinquentes são aqueles que mandam derrubam malocas, sem perguntar quem são as pessoas que as ocupam. Delinquentes são os signatários de políticas higienistas que compactuam com retiradas de cobertores em pleno inverno rigoroso. Sem contar os jatos d’água, que limpam a sujeira humana das portas dos comércios.
Nascem nesse berço, crianças sem nome, anônimas. Elas já possuem todo seu destino traçado desde a dependência do cordão umbilical. Um vicio de nove em cada dez logo no primeiro uso. Se isso não for doença, já não sei mais o significado de patologia.
Em tempo, ofereçam tratamento digno; ou vão se tratar, novamente, pelo mesmo motivo higienista. Sejam para achincalhar LGBT’s, negros ou dependentes de crack. Haja divã, haja terapia, haja paciência.
* Carlos Eduardo Gonçalves é professor de Santa Cruz do Rio Pardo, biólogo e doutorando em Educação para a Ciência.
Mais notícias da categoria CULTURA