CULTURA

O diário esquecido de Francisco

Construtor conhecido durante décadas em Santa Cruz, o italiano Francisco Camilo escreveu à mão um diário a partir de 1937

O diário esquecido de Francisco

Inês Maria, filha de “Chico” Camilo, foi quem encontrou o diário do pai, perdido entre louças antigas

Publicado em: 19 de janeiro de 2024 às 20:38

Sérgio Fleury Moraes

 

Ele veio da Itália, junto com os pais e irmãos, no início do século passado. Francesco Cameron, seu nome original, passou a ser Francisco Camilo quando se naturalizou brasileiro por um decreto de Getúlio Vargas. “Ele adorava o Getúlio”, conta a filha Inês Maria Camilo de Souza, 85, que via o pai passar horas escrevendo num caderno. Muitos anos depois de sua morte, ao retirar um antigo jogo de pratos do sobrado da família na rua Rangel Pestana, ela encontrou o caderno do pai. Era, na verdade, um diário manuscrito com caneta tinteiro, iniciado em julho de 1937.

O curioso, segundo a filha Inês, é que Francisco chegou ao Brasil praticamente analfabeto e não teve oportunidade para estudar. Aprendeu, então, como autodidata. Por força das leis de imigração, os italianos chegavam ao País para trabalhar na lavoura. Francisco, portanto, foi colono numa fazenda em Cerqueira César.

No entanto, tinha o dom da construção, que começou a exercer quando veio morar em Santa Cruz do Rio Pardo, a convite de um homem que conheceu em Cerqueira e que se tornou seu grande amigo. Era Ângelo Aloe, que o convidou para trabalhar na colheita de café na região do “Cebolão”, perto do distrito de Sodrélia. Alguns anos antes de se mudar para a área urbana de Santa Cruz, Francisco já era proprietário de um lote de terras.

Na cidade, ficou conhecido como “Chico” Camilo e começou sua trajetória como construtor. Ergueu várias residências e, nos anos 1930, foi convidado pelo comerciante Benjamim Vuolo para participar da construção do histórico “Colégio Companhia de Maria”. O terreno havia sido doado pelo benemérito Plácido Lorenzetti.

Inês Maria, inclusive, estudou no antigo colégio até a terceira série. Depois, abandonou os estudos por conta do namoro e, em seguida, casamento. Ela conta que as madres do colégio, em gratidão, doaram restos de materiais de construção para Francisco, com os quais ele construiu um sobrado que até hoje pertence à família.

 

O construtor  anotava contas, empréstimos e o que acontecia na família ao longo das  décadas. Francisco Camilo anotou os nascimentos dos filhos e a morte de um deles, com apenas  8 meses de idade, depois de contrair uma doença

 

“Meu era um político nato, embora nunca disputasse eleições”, conta a filha Inês Maria. De fato, Francisco foi muito ligado ao grupo dos “vermelhos”, amigo de Leônidas Camarinha, Cyro de Mello Camarinha, Ângelo Aloe, Lúcio Casanova Neto e outros.

Até que, em 1958, houve a cisão política, com vários correligionários de Camarinha se transferindo para o grupo dos “azuis”, aliando-se à UDN de Alziro Souza Santos. Lúcio Casanova, que era tão amigo de Francisco a ponto de visitá-lo com frequência em sua residência, se afastou do construtor.

Inês acredita que o nome do pai na construção do “Colégio Companhia de Maria” foi esquecido por conta da política. “Depois da divisão, o grupo dos azuis venceu as eleições. E meu pai era amigo dos vermelhos”, explicou.

O “diário” de Francisco narra seus negócios, algumas casas que construiu ou alugou e o nascimento dos filhos. “Eu me lembro que ele ficava na mesa da sala e usava uma caneta tinteiro para escrever. Não dizia nada, só escrevia. Nunca imaginei que iria encontrar este livro muitos anos após sua morte”, conta Inês Maria.

 

 

Em setembro de 1937, Francisco escreveu que havia terminado a construção da casa de Agostinho Pinhata. “Trabalhei sozinho na mão de obra”, anotou, sempre seguido de um agradecimento a Deus. Ele lembrou que, naquele mês, tinha mais de três mil “contos” de réis.

No diário, os nascimentos dos filhos são registrados com alegria. Em fevereiro de 1939, Francisco escreve que “é com muita saúde e felicidade que anuncio o nascimento “da minha filhinha Inês”. Naquele mesmo ano, ele anota que estava iniciando a construção de sua própria casa. Segundo o diário,  ele paralisou a construção alguns meses depois porque precisou fazer uma “obra para o Camarinha”. Em seguida, lembra que construiu a escola do “Cebolão” e a residência de Benjamim Vuolo Júnior.

 

Foto da família de Francisco Camilo, possivelmente dos anos 1940

 

Em 1941, Francisco trabalhou muito, segundo suas anotações. Construiu ou reformou casas para João Elias Ribeiro, João Queiroz Júnior, Ferazini, Joaquim Machado, além de terminar o muro da Santa Casa. “Tudo está correndo bem, graças a Deus, e assim vamos entrar no ano de 1942”, escreveu.

O diário traz uma pausa, explicada mais à frente. “Em 24 de maio de 1942 nasceu meu filhinho Antônio Carlos Camilo, mas em janeiro de 1943 ficou muito doente e veio a falecer. Me deixou muito entristecido, mas conformado pela vontade de Deus, pois ele continua a viver sempre. Rogo ao Senhor que ele nunca seja esquecido”, escreveu.

Francisco Camilo anotava tudo, desde empréstimos que fazia ou contraía, colocando até o valor dos juros. Em 1946, afirmou que terminava o ano “muito feliz”, pois estava com uma casa nova — um sobrado na atual rua Rangel Pestana.

Os anos se passam e Francisco se mostra um voraz leitor de revistas, passando a transcrever alguns artigos. Já não há datas em suas memórias e percebe-se que a caneta já não é mais a tinteiro. Ele elogia uma reportagem da revista “Contigo” sobre terapias caseiras para combater a pressão alta. “Infelizmente pertenço ao clube dos hipertensos, como outros 12 milhões de brasileiros’, escreveu.

Francisco parecia caminhar para a aposentadoria, apesar do diário mostrar muitas contas nos cantos das páginas. Ainda sem datas, ele começa a comentar filmes, novelas da televisão e a vida de artistas.

Já estamos nos anos 1980, pois Francisco dedica grande espaço à morte da cantora Clara Nunes, após sofrer um choque anestésico numa cirurgia de varizes. Mais à frente, comemora o lançamento de uma nova cédula do cruzeiro com a efígie do ex-presidente Juscelino Kubitschek.

Camilo também acompanhava o futebol de sua terra natal, a Itália. Ele narra, por exemplo, a derrota da Fiorentina do craque brasileiro Sócrates para a Roma por 2x1. Algumas linhas depois, Francisco escreve pela última vez no seu “diário”, comentando a trágica morte de Jurema, a primeira mulher do craque vascaíno Roberto Dinamite. “Era sua empresária, protetora e procuradora. Foi balconista, escriturária e promotora de vendas, cursando madureza à noite”.

O livro termina na página 97. Possivelmente não há um segundo volume, pois as páginas seguintes estão em branco. Francisco Camilo morreu alguns anos depois.

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