Publicado em: 10 de agosto de 2018 às 23:05
Atualizado em: 30 de março de 2021 às 09:45
O cardume
João Zanata Neto *
Sinceramente, alguns políticos não passam de um fenômeno midiático. A exposição nacional ou internacional de um cidadão comum lhe dá a publicidade suficiente para que ele se transforme em um personagem político. Esta exposição pode ser provocada ou involuntária, mas o fenômeno midiático não está no consciente ou inconsciente do personagem. No sentido estrito do termo, fenômeno significa um evento natural. O fenômeno midiático é um efeito da superexposição pública no consciente coletivo. Tal efeito pode ser provocado pelos veículos de comunicação involuntariamente como um efeito colateral da atividade ou voluntariamente quando se intenta manipular a opinião pública. Em ambos os casos há uma manipulação, mas uma delas é direcionada a um interesse. Desta forma, questiona-se se há realmente uma opinião pública sobre determinado fato ou se trata de uma equivocada percepção coletiva diante de um contexto midiático impreciso ou até da ausência de uma contextualidade. Nestes casos, a percepção coletiva pode até condenar um inocente por desconhecer as circunstâncias do fato. Então, o fenômeno midiático é uma percepção coletiva equivocada ou parcial dos fatos que lhe impressiona o suficiente para registrar uma opinião comum em decorrência da superexposição dos fatos.
-Nossa, doutor, falando assim com essa desenvoltura e com essa elo... eloquência, eu não saberia por onde discordar. Vai Manoel, traz o vinho melhor da casa porque o doutor aqui é letrado.
-Agradeço a gentileza, estimado amigo, mas dispenso qualquer título de nobreza, pois estes poucos conhecimentos que possuo não se destinam ao prestígio ou qualquer outra forma de massagear o ego. Sou imune à fama para que com as minhas palavras possa criticá-la sem ser hipócrita.
-Reconheço a sua modéstia como virtude, mas para mim o doutor é uma autoridade no assunto.
-Compreendo as suas lisonjeiras palavras, mas não esteja sempre certo de que todos os doutores são autoridades em seus conhecimentos, pois a autoridade em um assunto carece de uma imparcialidade verdadeira. Há muitos falsos descompromissados que se arrogam autoridade em certos assuntos somente para influenciar a opinião coletiva. A autoridade de um cientista político, por exemplo, é muitas vezes comprada para emitir opiniões direcionadas segundo o interesse daquele ou daqueles que se beneficiam de tais dizeres. Ser cético de início é sempre uma boa cautela para ser imune às falsas opiniões. É claro que manter uma convicção própria ante uma verdade avassaladora é pura tolice. Infelizmente, a maioria dos cidadãos não tem um senso crítico apurado ou não percebem a lógica absurda de uma afirmação. Por trás de cada fato há sempre um ser comum com os seus defeitos e interesses ocultos que podem ser presumidos com a experiência do comum, ou seja, daquilo que normalmente ocorre.
-Quer dizer, doutor, que todo político é um mentiroso pelas vias diretas ou indiretas?
-Não necessariamente. O que ocorre é uma dificuldade constrangedora para se encontrar o verdadeiro político ante um contexto de poder do Estado. O Estado é feito um tubarão, rodeado por seus peixes parasitas que lhe comem as migalhas ou apenas se coçam em sua áspera pele. Diante deste predador, o povo só pode se defender quando se reúne em cardumes. Esta comparação é puramente alegórica, mas é bem pitoresca ao exprimir o poder do Estado. Entre as Teorias políticas que conceituam o poder do Estado e a prática política que se observa há um abismo. A velha máxima, o poder emana do povo, nunca foi tão dúbia. De fato, ele emana do povo, mas nele não se detém. Tão logo o povo escolhe os seus governantes, ele perde o seu poder, pois não há mais quem defenda os seus interesses de forma plena e despretensiosa. Quando se forma o Estado, o povo passa a ser dirigido por leis simbólicas que exprimem a hipocrisia máxima de um governo. A Constituição de um povo é uma forma de pacificação, ou seja, uma tolerância do poder que visa a sua própria sustentação. O Estado significa uma situação de dominação, ou seja, o Estado se apropria indevidamente do poder como um pecado original. Estas afirmações não são tão duras ou irresponsáveis como a realidade política que se encontra maculada por propinas e corrupções incontáveis. Os escândalos políticos se tornaram o cancro da sociedade. Em meio a uma realidade que desvirtua a nobre figura do bom político, é difícil separá-lo dos demais.
-Não sei o que dizer, doutor. Estou me sentindo um peixinho dentro de um cardume afugentado... Manoel, traga vinho branco que é para combinar!
* João Zanata Neto é escritor santa-cruzense, autor do romance “O Amante das Mulheres Suicidas”.
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