CULTURA

Pascoalino: 'A letra P de partida'

Pascoalino: 'A letra P de partida'

Publicado em: 19 de julho de 2019 às 14:35
Atualizado em: 24 de março de 2021 às 12:27

A letra P de partida 

Pascoalino S. Azords

Da equipe de colaboradores

Meu pai revirou o guarda-roupa atrás da única gravata que tinha lá em casa. Depois, laçou o próprio pescoço e começou um nó professoral. Ele nunca teve muita paciência com a gente, mas eu estava de partida para São Paulo e isso tornava as coisas diferentes naquela noite. Quando passava para as minhas mãos, a gravata voltava a ser um pedaço de pano, como se aquilo fosse um número de mágica ao contrário. Estávamos os dois ali, sem palavras, como nos sonhos, no quarto refletido na penteadeira de minha mãe. Por causa desse espelho, aquele quarto era o maior cômodo da casa. Então ele fez o nó definitivo, para durar comigo sem desatar lá na capital. Era uma gravata prateada para o azul, imitando couro de cobra, com umas pintas escuras como as do tucunaré.

Depois, meu pai tirou o relógio do pulso e me entregou: “Você vai precisar disso lá”, disse. Era automático e à prova d’água, mas um pouco grande para mim. É um de mostrador azul que aparece nas poucas fotos daqueles anos, sempre no punho, que assim ele não parava e também ninguém roubava.

Minha mãe me deu a bênção e meu pai me acompanhou até a rodoviária velha. Íamos os dois a pé e sem palavras, fazendo coro com a cidade que já se preparava para dormir. O que estaria pensando meu pai, em silêncio, carregando a mala mais pesada por aquela rua de terra? Em casa ele não falava muito da São Paulo que conheceu quando a cidade se enfeitava para a festa do IV Centenário. Contava sempre o mesmo pedaço de uma história que falava das estrelas do Teatro Brasileiro de Comédias que lhe confiavam as partes do corpo onde preferiam tomar a injeção. Tonia Carrero, Cacilda Becker, Cleide Yaconis, Pepita Rodrigues, enfim, todas as beldades do TBC que tinham entrado na sua farmácia. Sua farmácia é modo de dizer, que a farmácia, na verdade, era do finado Adail, ainda vivo naquele tempo.

Quando o ônibus encostou e a viagem parecia inevitável, embora nem meu pai e nem eu tivéssemos a mínima idéia do que é mesmo que eu tinha que fazer na capital, ele me abraçou (pela primeira vez naqueles 16 anos) e tentou resumir tudo o que tinha para me dizer em duas frases curtas. Disse assim mesmo, sem ênfase, como convinha a um farmacêutico: “Tome muito cuidado, e nunca confie em ninguém”.

Eu jamais perguntei às pessoas que fui conhecendo, o que seus pais disseram quando elas saíram de casa. Cada caso é um caso, ou melhor, cada casa é uma casa. Em outras palavras, eu achava que aquele conselho tinha sido inventado ali na hora do embarque pelo meu pai, especialmente para mim. Achava que aquele incitamento a não confiar em ninguém era um trunfo que ele estava me dando junto com o relógio para eu não perder a hora. Lição de poucas palavras para eu não esquecer.

São Paulo também tinha a sua velha rodoviária. Era uma só para quem quer que chegasse do Brasil inteiro. Às 5 horas da manhã, debaixo de chuva, aquilo era como uma festa do peão em dia de sol: gente pra todo lado. E difícil saber quem estava chegando ou quem estava partindo, pra que lado ficava a cidade ou onde se escondiam os ladrões. Cuidando para não parecer perdido, perguntei a um senhor onde ficava o ponto do circular para Pinheiros. E tornei a perguntar a outro velho para ver se o primeiro não tinha me enganado.

Em São Paulo as pessoas também não se falavam e um dia resolvi deixar todo aquele barulho para trás. Isso de não voltar seguindo o próprio rasto eu não aprendi com meu pai não. Para encontrar minha mãe, ele pegou o caminho do Peabiru, e se atolou no Vale do Ivaí. Logo depois de casado, meu pai retornou a São Paulo e de lá para o lugar onde tinha deixado o seu umbigo enterrado.

Eu não. Eu caí nesse trecho do bandeirante Raposo Tavares – como você que me lê agora, ou seu pai, ou seu avô – e fui esticando raízes por aqui, que nem batata doce ou mandioca brava. Pra ver que com esse negócio de não confiar em ninguém a gente pode voltar para o próprio umbigo como ir longe demais ou a lugar nenhum. Cada caso é um caso.



  • Publicada originariamente em 23/07/2000


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