CULTURA

Geraldo Machado: 'Muito leite, pouco mel'

Geraldo Machado: 'Muito leite, pouco mel'

Publicado em: 20 de agosto de 2019 às 15:16
Atualizado em: 29 de março de 2021 às 09:13

Muito leite, pouco mel

Geraldo Machado *

Dorme menino. Meu pai levantava da cama bem cedinho e ainda com o escuro, ia tirar leite no mangueiro, numa obrigação que tomava os trezentos e sessenta e cinco dias do ano, mesmo que geasse ou chovesse canivete, ele ia.

Minha mãe já deixava a vasilha de leite (uma lata de 20 litros com uma ripinha reforçando a beirada do latão de querosene aproveitado para esse mister). Na boca do latão, um pano de prato feito de saco de farinha de trigo, lavado e alvejado e posto para enxugar no quarador. Cobria o pano com folha do pé de mamão do quintal, para economizar anil comprado – e o comércio ficava longe, mais de uma légua do sítio. Mais dois panos de prato iam ao latão vazio, esses para limpar as teta da vaca e enxugar as mãos do leiteiro (o leite tirado não era do Tipo A, mas tinha um ABC de higiene). Estou enxergando os cubinhos do anil da marca Guarani bem embrulhado em papel azul (cor dos sonhos das crianças da roça e da solidão que aromatizava o sono e iluminava o dia ao amanhecer com o canto cocorocó do galo carijó. Este com o seu par de esporas que daqui a pouco estará a arrastar no terreiro a provocar os frangões metidos a sebo e fugidos para não apanhar do dono do pedaço e da galinhada fora do poleiro a beliscar o milho).

A criança levantava cedo, acordada pela mãe: “Levanta que o dia está bonito. Seu pai já foi tirar leite e logo, logo está de volta – vamos, já, fora da cama! A Guarani vendia também, um tubo de papelão com um pozinho marrom e azul da cor do anil em cubos.

Essa tintura era dissolvida em água fervendo e servia para tingir as roupas, mas a minha mãe via nisso uma maneira de disfarçar a sujeira da camisa ou do lençol de algodãozinho. “Esse é serviço de gente porca e desmazelada.” Essa linguagem forte era a maneira peremptória de não deixar dúvida: pau, pau,pedra, pedra.

Cabe-me já dar uma pausa a esta velha Remington. Previno o leitor de que “atacado” de senso de responsabilidade, peço encarecidamente, que me ajude. Ponho (do verbo ponhar) e para facilitar o entendimento dessa roupagem própria de camarim de teatro, um “se não me engano”. Ao fazer isso passo a considerar um script, um roteiro feito a duas mãos: minha e do leitor saudosista. Com isto posto, vou falar do Rubem Braga. “Num momento de descrença, Rubem Braga liquidou entre amigos, há um ano, a sua passarinhada, as crianças aqui de casa tocaram um bicudo e um cenário”. Este, leitor, é o modo com o qual o escritor carioca, Paulo Mendes Campos escreveu o artigo com o título feliz: O Canarinho. É um trabalho de mestre (de mestrado), com o que me presenteou o moço estudioso de Direito… e direito, André Augusto Claro. Desse artigo eu só tenho cópia digitada pelo André e, por isso passar para o leitor que julgou estranho o verbo ponhar. Ele não existe, mas inda é conjugado no presente no passado e futuramente será se o governo não esquecer o PIB para pensar nas gerações do futuro. Quem tem de alfabetizar os brasiguaios é o Paraguaio – com a cartilha portuguesa ou guarani. Dos verbos caboclos, ele é o mais difícil de ser erradicado do palavreado rural e simples que, de ouvido, desafia a nossa gramática. “Era um canário ordinário, nunca lera Bilac, e parecia feliz em sua gaiola. Paulo Mendes Campos (já que o canário insistia em trinar) soltou-o. Vai-te embora, canarinho, que não te quero mais. Mas ele fica. Brincando de corvo, dizendo never more. Este refrão (never more) me deixa esquisito. Estou triste, ridiculamente triste, nesta manhã luminosa de junho; para mim é uma tarde chuvosa e fria de julho e eu preso nesta gaiola, neste quarto fechado. Tento empurrar com alavanca e vejo de perto o papel branco na máquina, o “chamequinho” a pedir um ponto ou mesmo uma vírgula, a menor de todas as pausas, a pedir tinta preta e, não azul desbotado.

Deixei meu pai tirando leite e a minha mãe quarando panos de prato. Anil, só na roupa branca. Não posso deixar o rumo sinuoso do artigo, só com o leite que meu pai ordenhava e a minha mãe enchia os litros dos meninos descalços do sítio. O que sobrava de leite a mamãe requeijava um requeijão gordo e puxa-puxa. Meu pai separava um litro para o seu leite com farinha de milho, mania de mineiros, coisas do meu avô, mineiro. No Mato Grosso, o tererê, na cuia, frio, chupado com um canudinho de prata. No Sul, o mate fervendo: lá faz muito frio, a bebida é quente. Vou deixá-los assim: no Sul, mate com os gaúchos no galpão ao pé do braseiro.

No sítio, meu pai colhia mel silvestre (Melíponas) e de abelha Europa (Apis). Dizia-se “oropa” para combinar com o dialeto. Cesar, imperador romano, perguntou ao velho qual a razão de tanta rigidez física e lucidez mental. O ancião respondeu: “Instrinsicius, mellis; extrinsius, oleum” – (por dentro, mel; por fora, óleo (azeite de oliva). Para porque li não sei onde, mas ainda me lembro: mel é sempre muito mel… e chupado no canudinho da flor do capim amargoso. E, agora, para ficar como eu quero: é ou não é, Israel Marcos de Paula, meu amigo mais recente e mais ausente? 



  • In memoriam


  • Publicado originariamente em 2006


SANTA CRUZ DO RIO PARDO

Previsão do tempo para: Sábado

Céu nublado
22ºC máx
10ºC min

Durante a primeira metade do dia Períodos nublados com tendência na segunda metade do dia para Céu limpo

COMPRA

R$ 5,41

VENDA

R$ 5,42

MÁXIMO

R$ 5,43

MÍNIMO

R$ 5,39

COMPRA

R$ 5,45

VENDA

R$ 5,63

MÁXIMO

R$ 5,46

MÍNIMO

R$ 5,43

COMPRA

R$ 6,38

VENDA

R$ 6,39

MÁXIMO

R$ 6,38

MÍNIMO

R$ 6,37
voltar ao topo

Voltar ao topo