CULTURA

Geraldo Machado: 'O vidro de molho'

Geraldo Machado: 'O vidro de molho'

Publicado em: 01 de outubro de 2019 às 22:54
Atualizado em: 30 de março de 2021 às 09:06

O vidro de molho

Geraldo Machado *

“A vida é o que

fazemos e o que

nos acontece”.

(Ortega Y Gasset)

Se eu não fizesse, não teria chegado com esta vida até aqui. Hoje, faço diferente e, iludido e até lisonjeado, creio no que me disse uma grande amiga, querendo me agradar decerto: “você tem uma juventude acumulada”. Na verdade, ela quis se referir ao meu interior, este que exponho aqui sempre que possível. Na silhueta, nesta, como no tronco de uma velha árvore, o tempo engrossa a casca, marca vincos. É nos galhos, nas ramas em que se exibe a clorofila, que gorjeiam e fazem ninhos os pássaros. É na sombra que protege e refresca as raízes, que sentimos essa metáfora, essa alegoria da vida, que são os filhos e os netos.

Se não acontecesse, eu não teria o que contar e o que sentir, guardados neste coração espaçoso, nesta saudade inquebrantável. Não amava nem aborrecia. Nutri a alma e Deus tornou este coração habitável. Li esta sentença n’algum lugar: “sem Deus, qualquer autobiografia se converte em nauseabundo narcisismo. Por isso, haja cuidados nestes transportes de saudade, neste pôr do sol da vida, tão formoso, tão do céu.

Nesse alinhavo de lembranças das cenas rurais, aparece o bordado singelo do dia a dia do homem do campo e suas particularidades, muito ao revés do palco urbano. Revivendo os tempos em que o trabalhador rural morava nas fazendas, e vivia em casas alinhadas a pouca distância das fontes das águas de beber e lavar-se. Chama a atenção a disputa que havia para se localizar melhor. Havia casas chamadas “grupos”, geminadas na construção e no quintal. Não se vivia bem aí. Sem liberdade para separar as criações e plantar pequenas culturas. Não era fácil a convivência das famílias e a liberdade das crianças neste espaço comum. O mesmo chiqueiro, o mesmo paiol, o mesmo forno de assar pão. O pior era a água que era a fonte de desavenças entre as mulheres. O que aliviava um pouco era a permanência da família, de sol a sol, na lavoura.

Geralmente, o colono fincava pé numa fazenda por muitos anos. O trabalhador avulso, chamado “camarada”, este mudava muito. Na colheita de café, quatro ou cinco meses, trabalhava de “terreireiro”, secando café.

Terminada a safra, mudava de fazenda, levando os filhos que eram poucos e desligados da escola. Esse nomadismo criou esta massa analfabeta, cujo estuário desse imenso caudal é o acampamento da beira da estrada e a favela dos centros urbanos.

O deslocamento de uma fazenda, de um sítio para outro – a mudança – tinha lances tragicômicos. Procurar emprego, escolher a casa e a água, muitas vezes longe e precária, era um aspecto muito sério para o trabalhador e a família.

Nas mais das vezes, essa mudança era feita em carroças de burro ou carretas puxadas por trator. Não era grande a carga nem os trens de casa: cama, mesa, prateleira rústica, panelas e alguns pratos e bacias. O colchão enrolado e amarrado; o arame farpado do varal de roupas, conhecido pelos fiapos perdidos nas farpas do arame. Poucas ferramentas, galinhas, um cachorro e um gato das crianças. Uns paus de lenha para começar o fogo na cozinha pequena da nova morada.

Isto era importante. Chegando tarde à nova casa, não dava tempo de “campear” lenha para cozinhar o feijão. Outra coisa importante: não esquecer a chapa do fogão que, quase sempre, não se ajustava ao outro fogão, cheio de cinza, faltando tijolos na taipa. Que vida: Chegar no escurecer a pé, atrás da carroça carregada, varrer a casa abandonada, de qualquer maneira pelo morador anterior. Fazer janta depois de acomodar os trens e a mobília. De mais a mais, o marido machista deixava tudo por conta da mulher. Até a limpeza do mato que invadia a moradia numa triste rima. Arrumar uma árvore ou um poleiro improvisado para meia dúzia de galinhas e alguns pintos. Amarrar o cachorro por uns dias para ele não voltar para a velha morada, e abrir um trilho até a mina d’água. Que vida: uma mudança que nada mudava…

Um carroceiro me contou que uma vez, ao carregar uma destas mudanças, como era de costume, perguntou à mulher o que ela tinha para levar, para ele poder arranjar, com cuidado e economia de espaço, a carga.

A mulher, dando de mamar ao filho de colo, mostrou o que tinha de bens para testar aos filhos. Quando ele perguntou se havia alguma coisa frágil, de quebrar: espelho, quadro de fotografias e outros, a pobre mulher, resignada e esquálida, disse santamente: — eu queria que o senhor tivesse cuidado com o meu vidro de molho…

O litro de molho, feito de suco de limão rosa, fervido e recheado com pimenta malagueta ou cumari, é muito importante como estimulante do aparelho digestivo do homem do campo. Rara a casa em que este condimento precioso não tenha o seu lugar seguro.

Já agora é tarde. E eu termino esta história singela, lembrando Camilo Castelo Branco: “só o homem se dói do homem, e Deus, de todos.” Não vou contar o que me dói — que doidice séria, séria….

* In memoriam



  • Publicado originariamente em 2012


SANTA CRUZ DO RIO PARDO

Previsão do tempo para: Domingo

Períodos nublados
23ºC máx
10ºC min

Durante todo o dia Céu limpo

voltar ao topo

Voltar ao topo