CULTURA

Rita Emboava, a ‘santa’ popular

Rita Emboava, a ‘santa’ popular

Publicado em: 01 de outubro de 2019 às 16:22
Atualizado em: 30 de março de 2021 às 15:26

Mulher que viveu muitos anos com lepra é cultuada como

‘santa’ no imaginário popular e ainda guarda mistérios

CAPELA — Perto do local onde morou Rita, há uma capela



Sérgio Fleury Moraes

Da Reportagem Local

Poucas vezes na história de Santa Cruz do Rio Pardo alguém despertou tanto fascínio a ponto de ganhar uma “canonização” popular. Rita “Emboava”, que viveu na cidade provavelmente entre 1884 e 1931, é conhecida como “santa” pela realização de “milagres”, muitos testemunhados por famílias que ainda existem. Ritinha ganhou duas capelas em Santa Cruz, locais em que os devotos depositam objetos e fazem orações. Uma delas está no Cemitério da Saudade e ainda é o local mais visitado nos feriados de Finados. A outra, fica perto da escola “Genésio Boamorte” e há décadas é cuidada por devotos da “santa” popular. Nos dois lugares, há muletas e outros objetos que lembram curas impossíveis.

Figura enigmática na história da cidade, Rita “Emboava” tinha lepra desde o século XIX. Era a doença mais letal da época e aquela que provocava maior preconceito. Durante séculos, os leprosos eram obrigados a viver afastados da sociedade, muitas vezes humilhados com um sino para denunciar suas presenças. A lepra é citada várias vezes na Bíblia, como a passagem em que Jesus ressuscita Lázaro — daí o adjetivo pejorativo “lazarento” — e no livro de Mateus, quando Cristo cura um doente que implora pela purificação. É que a doença, incurável por séculos, era tida como castigo para o pecado e símbolo da desonra.

A cura só veio a partir de 1873, pelas mãos do norueguês Armauer Hansen. Porém, sem a rapidez da tecnologia de comunicação, no Brasil até meados do século XX a lepra ainda era considerada incurável. Somente nos anos 1960 a doença mudou de nome e passou a ser chamada de hanseníase, em homenagem ao cientista. No Brasil, a troca oficial aconteceu através de uma lei de 1995.

REGISTRO — Em 1903, há registro da morte do filho de Ritinha



Rita Emboava não alcançou nenhuma destas conquistas, mas viveu além da conta para alguém que portava tão terrível doença. Em março de 1903, ela enterrou um de seus filhos, Antônio — nascido provavelmente em 1871 —, também vitimado pela hanseníase. Na época, o jornal santa-cruzense “Correio do Sertão” publicou o sepultamento em sua primeira página, com um texto romanceado sobre o sofrimento de Ritinha. “Quem não conhece em Santa Cruz esta mísera mulher, marcada pelo ferrete de Lázaro, a Nhá Rita, que se arrasta pelas ruas, de porta em porta, a implorar a caridade, as desgraças de sua alma dolorosa, a chaga do seu sangue envenenado?”, diz o texto que descreve a dor de uma mãe que enterra o filho. A edição do jornal, de 14 de março de 1903, diz que Ritinha já tinha um dos pés “devorado pelo vírus da Morphéa”.

Ritinha teve pelo menos mais um filho, Guilherme, nascido em abril de 1874, batizado pelo padre João Domingues Figueira — um dos fundadores de Santa Cruz, junto com Manoel Francisco Soares — e morto em 1890, também vítima da lepra. Neste ano, o marido de Rita, João Miguel Linhares, já havia morrido, também da doença.

Porém, Rita ainda viveu até 1931, contrariando todos os especialistas em hanseníase. Apesar da aura de “santa” milagreira, ela atravessou décadas como personagem que se perdera na história, sem nome e sem registros. Até que o casal de historiadores Celso Prado e Junko Sato Prado conseguiu informações e até fotos de Rita. Os principais segredos, então, foram desvendados.

FOTO RARA — Imagem do início do século XX mostra família no “Domicílio dos Leprosos”; Rita é a terceira, da direita para a esquerda



Sobrenome Andrade

De acordo com as pesquisas dos historiadores, Rita Generoza de Andrade nasceu em 1859 no sertão de São Domingos, onde hoje fica o distrito de Domélia, numa fazenda conhecida como “Santa Cruz da Boa Vista”. Era filha de José Joaquim de Andrade e Anna Luiza de Jesus. Sua morte aconteceu em 27 de outubro de 1931, atestada pelo médico e prefeito Abelardo Pinheiro Guimarães como sendo no “domicílio do leproso” — à beira do ribeirão São Domingos, nas imediações da Capela de Rita Emboava. Segundo consta, Abelardo determinou que a casa fosse queimada imediatamente após a morte da “santa”.

Quem conheceu Rita Emboava, garante que era uma mulher miúda, humilde e muito doente, embora nunca reclamasse da sua condição. Tinha um coração tão grande que, a despeito de sua miserabilidade, ainda repartia o que ganhava com outras famílias carentes. Era Andrade, sobrenome que significava ‘status’ na época de Joaquim Manoel de Andrade, fazendeiro que transformou Santa Cruz do Rio Pardo e deu ao lugarejo um rápido desenvolvimento.

Mas, então, por que “Emboava”? O apelido simplesmente veio do marido, João Miguel Linhares, um tropeiro que trabalhou com latas em Santa Cruz. “Era ele quem tinha lepra. Provavelmente chegou à região na comitiva de Manoel Reis, vindo da região de Barbacena, Estado de Minas Gerais”, explicou Celso Prado.

Junto com os Linhares, vieram também os Alvins, grupo familiar que teve participação na “Guerra dos Emboabas” em Minas Gerais, entre 1708 e 1709. Os bandeirantes costumavam se referir pejorativamente como “emboabas” os forasteiros que tentavam controlar a região tardiamente. Em São Paulo, o termo era usado para se referir aos forasteiros que se aventuravam em busca de metais preciosos.

Celso Prado descobriu, ainda, que João Linhares teria nascido em Sabará, palco da “Guerra dos Emboabas”. O pai, Manoel Mendes Linhares, era filho natural de José Mendes Linhares com a escrava Florência Maria.

A descoberta mostra que Rita, na verdade, herdou o apelido do marido, que acabou se transformando em nome próprio da “santa” da cidade. Como o marido provavelmente morreu no final do século XIX, sua história se perdeu e ninguém mais associou o “Emboava” a João Linhares.

Celso Prado explicou que, embora os grandes segredos de Rita Emboava tenham sido desvendados, ainda resta encontrar os rastros do marido dela. “Estamos com pesquisas adiantadas, mas o maior obstáculo são os homônimos. Eles são um perigo terrível, pois nós mesmos já erramos com os Andrades. Encontramos vários registros de João Linhares, mas precisamos saber se é o legítimo morador de Santa Cruz do Rio Pardo e marido de Rita Emboava”, afirmou.




CAPELA — No cemitério, eram rezadas missas na capela construída para Rita Emboava, até que foram suspensas



Rita Emboava foi até tema

de um trabalho sociológico

Tese de Teófilo de Queiroz, publicada em

1966 pela USP, tenta desvendar a ‘santa’

Teófilo de Queiroz Júnor, da USP



Um dos nomes consagrados da educação brasileira, o professor Teófilo de Queiroz Júnior — que morreu em 2007 aos 81 anos — participou em 1966 da revista “Sociologia”, editada pela USP, com a tese “Rita Emboava, a santa de Santa Cruz do Rio Pardo”. Teófilo era mestre e doutor pela Universidade de São Paulo, da qual foi catedrático e professor titular de Ciências Humanas. Foi o primeiro levantamento literário de uma personagem de Santa Cruz no decorrer de três décadas — 1900-1930.

De acordo com o texto, foi um “desafio” para Teófilo expor perguntas que se perderam na história sobre Rita Emboava, ou “Nhá Rita”. Claro que há erros em alguns registros, mas escrever sobre Rita numa época em que não havia nenhuma informação, muito menos internet, era mesmo um grande desafio.

Nascido em Santa Cruz, cidade que também lhe outorgou o título de “cidadão emérito”, Teófilo de Queiroz Júnior foi professor da antiga Escola Normal (hoje “Leônidas do Amaral Vieira”), do antigo Colégio Companhia de Maria e do Seminário da Escola Dominicana. Formou-se em Sociologia na USP e escreveu vários livros. Foi, ainda, diretor da rádio Difusora e do jornal “A Folha”, do qual foi um dos fundadores juntamente com o ex-prefeito Carlos Queiroz.

Em seu trabalho de 1966, Teófilo citou o marido de Rita, cujo nome não sabia, como sendo “um português”. Ele chegou a esta conclusão entrevistando “Sinhá Inocência”, uma velha e conhecida parteira nos meios mais humildes de Santa Cruz e que conheceu Ritinha. Segundo ela, o marido teria vindo da “terra dos boavas” que, para Teófilo, tanto poderia ser Minas Gerais como Portugal.

A ‘SANTA’ — Rita em foto do início do século XX, já sem parte dos dedos



Em suas pesquisas, Teófilo percebeu que Rita Emboava, mesmo doente, era querida e protegida pela cidade. Ao mesmo tempo, outros leprosos eram perseguidos pela polícia, numa ação constante defendida pela sociedade para afastar “os riscos do contágio da terrível moléstia”. Um dia, a própria Rita, com receio de ser presa e removida para um leprosário, também fugiu, mas foi resgatada com uma “condução” cedida pelo próprio chefe de polícia e trazida de volta. Rita Emboava era uma exceção e, ao menos na primeira década do século XX, ainda andava.

Segundo Teófilo, a partir de um estágio da doença Rita Emboava passou a ficar reclusa em sua residência humilde. Porém, recebia visitas todos os dias, especialmente senhoras que ficavam na calçada e pediam orações. Foi aí que começou a fama de Ritinha Emboava como milagreira.

Rita sobreviveu à época dos coronéis Joaquim Manoel de Andrade, Batista Botelho, Francisco Sodré, Tonico Lista, Leônidas do Amaral Vieira e tantos outros, até chegar ao governo de Abelardo Guimarães. Teófilo faz uma comparação com a italiana Margherita Lotti, mais tarde Santa Rita de Cássia, que também foi casada pelo pai, enviuvou, sobreviveu aos próprios filhos e, “estigmatizada por uma chaga incurável, padeceu resignadamente e operou milagres, antes mesmo de morrer”.

Aliás, o professor lembra alguns “milagres” que teriam sido operados por Rita Emboava e descreve o culto que se formou em torno de sua imagem, principalmente as velas acesas às segundas-feiras — dia em que os católicos oram pelas almas no purgatório — ou na capela em devoção a ela que há anos existe no cemitério de Santa Cruz do Rio Pardo.

Entretanto, Teófilo ressalta que existiu harmonia entre “Nhá Rita” e a Igreja católica, geralmente prudente em relação aos “casos” de santidade. “Ora, Nhá Rita jamais de intitulou santa, nem mesmo se arvorou em realizadora de milagres. Ela simplesmente se propunha a rezar ao Divino Espírito Santo para que, Este sim, operasse o milagre pretendido ou necessário”, escreveu. Enfim, para o professor, Rita Emboava era católica convicta e praticante.

Ele conta que, numa solução harmoniosa, a capela de Rita Emboava no cemitério foi recebida pela Igreja e consagrada como “capela a Santa Rita de Cássia”. Mais de um século e meio após seu nascimento, Rita Generoza “Emboava” de Andrade foi homenageada com um bairro batizado com seu nome.



  • Publicado na edição de 22 de setembro de 2019


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