CULTURA

Pascoalino: 'Loucuras de amor e pipoca'

Pascoalino: 'Loucuras de  amor e pipoca'

Publicado em: 05 de outubro de 2019 às 14:39
Atualizado em: 29 de março de 2021 às 20:55

Loucuras de

amor e pipoca

Pascoalino S. Azords

Da equipe de colaboradores

Cresci num lar sem presentes. Daí que quando dona Izaura Hiroko explicou em que consistia a brincadeira de amigo secreto, eu achei interessante. Estávamos saindo da 1ª série ginasial, mal entrando na puberdade, e eu estudava numa classe mista. A troca de bilhetinhos com pistas falsas e insinuações dos presentes pretendidos não foi possível, pois nada podia concorrer com as provas do último bimestre. Naquele tempo, passar de ano era mais do que uma prioridade: era uma obrigação. E só se passava de ano estudando, que o governo ainda não era leviano ao ponto de ir empurrando os atrasados pra frente para ver no que vai dar.

Metade da minha classe vinha do sítio. Eles em camisa branca e calça bege — para não sujar muito. Elas em saia azul marinho, camisas brancas e uma gravatinha feia para enfeitar. Eles e elas em meias brancas e sapatos pretos de amarrar. Éramos todos menores do que a dona Izaura, e a menina mais bonita da classe, a Angelina, era a menor de todos nós. Loira como uma espiga de milho, a polaquinha vinha de Vila Dirce. Nos fundos da casa dela passava um córgo onde se brincava nas tardes de calor. Ela até me chamou para conhecer, mas Vila Dirce era longe e eu não sabia nadar.

Por sorte, ou porque éramos apenas 17, a Angelina me tirou como seu amigo secreto. Ganhei dela um aperto de mão e um álbum do Zorro para colorir. Eu tirei o Gilnei, hoje médico em Londres, e comprei para ele um disquinho de vinil. Quando o Alfredinho revelou que a Angelina era a sua amiga secreta, eu o invejei com toda a força dos meus dez anos de idade. E o invejei novamente quando ele foi apanhar o presente no fundo da sala: um pacote enorme como um globo, embrulhado em celofane vermelho, parecendo prenda de quermesse.

Ah! Ia me esquecendo: nosso amigo secreto também não teve aquele teatro da anunciação para que a plateia vá intuindo o nome por conta própria ou parentesco com a descrição. Na verdade, a brincadeira se resumia à troca de presentes. Mas quando a Angelina abriu o embrulho de celofane vermelho, acabou a graça pouca que podia haver naquilo. Nem a dona Izaura foi capaz de estancar o choro sentido da polaquinha diante do seu presente: um prato de pipoca estourada na véspera.

A gente ainda era muito inocente. Eu, por exemplo, me diverti muito com o álbum do Zorro. E o Alfredinho, com aquela cara lambida, não entendeu porque a Angelina chorou ao ver o seu presente explosivo de milho. Ninguém desconfiava que uma menina que convida um colega de classe para tomar banho de rio já está num outro estágio de barganha.

Um dia desses eu voltava a pé para casa quando me deparei com um teatrinho de rua: um carro parado em frente a um sobrado irradiando uma mensagem de amor. O marido era o mandante da surpresa para a homenageada com quem estava completando mais um ano de feliz união conjugal. A voz não era a do marido, mas a mensagem era toda feita na primeira pessoa do singular: “Como é lindo compartilhar essa data com você. Se eu pudesse escolher de novo casar, eu diria sim outra vez. Quero dizer que sou a pessoa mais realizada desta vida. Obrigado por você existir”. Aquela voz estranha era um detalhe que não criava nenhum constrangimento para o casal, para os filhos pequenos, e nem para os vizinhos.

A homenagem incluía serviço de filmagem, e, como já estava escurecendo, um potente holofote deixava tudo às claras. “Toda noite em meus sonhos eu penso em você, sinto você, meu amor”. A família perfilada, em silêncio, estática como se o cinegrafista fosse bater uma falta contra o gol. Encerrada a apresentação, o holofote apagou-se e a aniversariante subiu acudir o fogão. O marido voltou para a televisão – que tinha permanecido acesa na sala. A vizinhança foi cuidar da sua vida, a equipe de cupidos profissionais partiu num carro velho, e a rua voltou ao normal. Antes, conversei um minuto com a cinegrafista que me deu mais detalhes do seu serviço. A mensagem à domicílio, ao contrário da telemensagem convencional via fone, chama-se Loucuras de Amor. Preço: R$ 30,00 — incluindo a filmagem. A fita é entregue no dia seguinte, depois da edição inserir textos na abertura e no encerramento do filme.

Voltei para casa pensando no que tinha acabado de ver. Trinta reais até que não é caro, mas com esse dinheiro eu preferia comprar um saco de pipoca”.



  • Publicado originariamente em 17/06/2001


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