CULTURA

Geraldo Machado: 'Depois de mim o dilúvio'

Geraldo Machado: 'Depois de mim o dilúvio'

Publicado em: 08 de outubro de 2019 às 02:01
Atualizado em: 28 de março de 2021 às 08:14

Depois de mim o dilúvio

Geraldo Machado *

“Sobre toda

propriedade

privada, grava

uma hipoteca

social.” (João Paulo II)

Esta região da Sorocabana foi aberta para a cafeicultura, no princípio deste século, por fazendeiros e colonos (a maioria italianos), vindos da Mogiana. As terras-roxas, recém desbravadas, ofereciam oportunidades para aqueles que viam a lavoura daquela região mais velha entrar em decadência, trazendo com ela, a queda da produção.

Os colonos, ávidos por terras e lavoura novas, onde poderiam plantar cereais entre as linhas dos cafeeiros em formação, vieram para cá, onde, até hoje, podemos citar as famílias remanescentes essa migração.

Não é necessário dizer que esses descendentes são agora proprietários rurais e comerciantes bem sucedidos. A família tradicional dos Bueno, em Chavantes; o coronel Misael de Oliveira, em Ipaussu; e o coronel Tonico Lista, chefe político em Santa Cruz do Rio Pardo, onde deixou história, vieram todos de São Simão. Meus avós maternos — Negrão — vieram de Jaboticabal para Santa Cruz – “A Rainha do Sertão”.

Acácio Gomes dos Reis, alvo desta minha memória, veio de Cravinhos. Lá, onde tinha uma farmácia, casou-se com Dona Nininha, de quem já falei ao contar a história do Negle, aquele que mandou prender os patos para receber a visita honrosa da patroa.

Dona Nininha era de Brodósqui. O Acácio Reis veio assistir ao casamento de um membro da família do coronel Misael, em Ipaussu, e acabou comprando, nessa oportunidade, as terras da Fazenda Santa Francisca, no bairro do Ribeirão Bonito. Tornou-se, então, vizinho da minha família, fazendo divisa com a propriedade onde eu nasci.

Daí nasceu uma grande amizade que perdurou até o seu falecimento e, ainda hoje, é conservada pelos descendentes das duas famílias. Também, na mesma ocasião, comprou uma fazenda vizinha da Santa Francisca, o pai do Acácio Reis, o Juca Reis. Conheci-o, já bastante idoso, nada podendo contar a seu respeito.

Mudando para a Santa Francisca na década de 20, depois de vender a farmácia em Cravinhos, Acácio Reis teve um começo muito difícil para formar a sua fazenda. Enfrentou muita dificuldade financeira, culminando com a crise de 1929. Conseguiu plantar café à custas da lavoura de alfafa que, como costumo me referir, sustentou com a sua renda privilegiada, a maioria da formação cafeeira desta região.

Como minhas histórias têm que ser resumidas, já que os meus biografados são pessoas altamente meritórias, dando azo a muitas linhas de referências, apresso e antecipo o discurso. O Acácio Reis, quando lavrador, homem de fina formação e da tradicional família do norte de São Paulo, venceu. Educou os filhos com grau superior de ensino, casou as filhas e, cumprida a sua missão, vendeu a fazenda para o Raul Silva, homem de negócio, muito conhecido na região. Atualmente, essa fazenda pertence ao Dario Ferraz, meu vizinho, genro do Luizinho Assumpção, já falecido.

Bons exemplos preservados — o leitor deve ter percebido que as minhas memórias sempre terminam com um episódio que qualifica o retratado e fala do seu caráter edificante. É um modo meritório de se preservar os bons exemplos para as gerações que, infelizmente, não gostam de ler nem ver.

Uma ocasião, meu tio Quincas foi visitar o Acácio Reis, logo pela manhã. Depois de um café, um cigarro, uma pausa, tio Quincas perguntou ao amigo como ele ia passando. “Mal”, respondeu o Acácio. “Não dormi um instante esta noite. Encomendei mil mudas de eucalipto a uma firma de viveiro de plantas. Quanto elas chegaram na estação (ferroviária), mandei o carroceiro trazê-las. Chegaram ao anoitecer à fazenda. Ao descarrega-las da carroça, vi que estavam praguejados; todos os recipientes das mudas, com tiririca. Esta praga não constava da encomenda. Pensei em avisar o administrador, o Primo Donato, para dar um jeito nelas, destruindo, pelo fogo, as mudas e a praga. Mas já era tarde, e deixei para a manhã do dia seguinte. Deitado, pensei: ‘ e se eu morrer nesta noite’? O Primo, que não conhece essa praga, inexistente nesta região nova, vai plantá-las e disseminar a tiririca na fazenda… Não vi o momento de amanhecer o dia e ver que estava vivo.”

Après moi le delúge — depois de mim o dilúvio — disse o rei Luiz XV, em francês (sempre a França…) num momento de inconsequente imbecilidade. “Depois de mim a tiririca” – não disse o Acácio Reis, em português, num gesto de clarividente bom senso e grande responsabilidade.

“Honra ao Senhor com a tua fazenda, e com as primícias de todas a tua renda. E se encherão os teus celeiros de fartura, e transbordarão de mosto os teus lagares” — Provérbios 9-10.

E mais: o Acácio Reis merece. “Não me inclino a queixar-me por ter plantado para que outros colham os frutos. Um homem tem motivos de queixa, quando semeia e ninguém colhe”. Vamos plantar. Ainda dá tempo.

* In memoriam



  • Publicado originariamente em 2012


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