CULTURA

Pascoalino: 'Bença, padrinho'

Pascoalino: 'Bença, padrinho'

Publicado em: 02 de dezembro de 2019 às 15:22
Atualizado em: 29 de março de 2021 às 18:06

Bença, padrinho

Pascoalino S. Azords

Da equipe de colaboradores

Antonio Sinhorinha era o nome de cerimônia do meu bisavô. No trato diário era chamado de Padrinho, e deve ter sido um homem grave nas piores idades, pois na prorrogação da velhice nunca teve precisão de lustrar os brios da sua inquestionável autoridade. A “melhor idade”, no entendimento atual, é quando juntamos os restos para viajar, dançar e tudo o mais que não fizemos nas demais idades – piores, portanto.

Requisitado de longe para aconselhamentos e arbitragem de demandas, meu bisavô era – sem o saber e sem perceber salário – uma mistura de delegado calça curta e juiz de paz. Analfabeto, para não destoar na paisagem, se destacava por saber o ponto certo em que as idéias combinam antes de virar palavra. E ele não precisava mais do que palavras para dissuadir justiceiros e acalmar arruaceiros da redondeza, embora levasse como à própria sombra uma peixeira atravessada na cinta.

Montava, apoitava, puxava água e fazia de um tudo com aquela faca nas costas. Talvez tivesse que se livrar dela para certas obrigações diárias, como na hora de dormir ou das exonerações intestinais. Minha bisavó – Maria por documento, mas que todos chamavam de Madrinha – era a única pessoa em condição de elucidar essas intimidades. Era uma mulher miúda e dada, como ficou nas fotos, mas que coisa com coisa só falava quando estava mais sozinha na presença do marido.

Quando fui levado à sua presença, meu bisavô era, por assim dizer, um velho sacudido. Continuava, porém, se benzendo diante da cruz de aroeira que plantou na porta de casa para espantar o diabo. Pela mão lisinha com que nos dava a bênção ninguém diria que criou cinco filhos lidando na roça. Estava sempre banhadinho, trocado e cheiroso de cigarro de palha o meu bisavô.

Morava a quatro léguas da vila, numa casa de taipa de sopapo entre a estrada e as águas rasas da Estiva, por onde subiam sucuris e outras imundícias atrás da mistura criada solta no quintal. Ninguém jamais o incomodou com a obrigação de votar, tomar vacina ou declarar as coisas que tinha ou o quanto ganhava. Meus bisavós, decididamente, nunca apareceram nas estatísticas dos homens.

A primeira lembrança que guardo da casa coincide com as bodas de ouro do Padrinho. Chegamos no sábado, a tempo de assistir à matança de uma novilha para o churrasco do dia seguinte. A chuvinha rica do verão e o instrumental precário tornaram ainda mais difícil o sacrifício. A água caía sem pressa e os carniceiros improvisados acabaram dispensando no chão o bucho onde ainda fumava o pasto da véspera. As mulheres se ocupavam dos frangos e da mandioca para o acompanhamento. Com o pescoço destroncado, os pintos eram jogados embaixo de uma bacia para não impressionar as crianças. Quando um escapava, víamos que os frangos caipiras morrem dançando mambo.

No domingo cedo um padre veio de jeep para celebrar a ceia do Senhor. Um velho guarda-comida transformou-se no retábulo do altar mor decorado com os santos que viviam espalhados pela casa. No terreirão da frente armou-se a barraca para abrigar os festeiros. Eu tinha cinco anos de idade, de forma que esse tempo corrido somado às fotos da velha Kapsa do meu pai hoje me dão apenas uma idéia desfocada, em branco e preto, daquela festa grandiosa.

Quando a chuva tornou, os homens apelaram pro baralho e as mulheres se esconderam no corpo da casa. A molecada parecia brincar de espelho com as aves que se escondiam embaixo das jabuticabeiras do pomar.

Em que pode ter sido diferente a festa das bodas de ouro do Padrinho da festa que celebrou o seu casamento cinquenta anos antes? Os convidados, com um intervalo de meio século, chegaram em animais de sela – com a santíssima exceção do padre e dos parentes distantes que vieram de trem até a Conserva para acabar de chegar à pé. As cervejas e as funadas foram servidas igualmente na temperatura ambiente. Não por qualquer imperativo litúrgico ou medida de economia, que naquele tempo por ali ainda nem havia energia para se racionar, nem gelo por conseqüência. Transcorrido meio século depois daquele dia, me pergunto se esse forçoso comparativo poderia ter ocorrido ao Padrinho na inércia vertical da chuva, desviado de suas obrigações de anfitrião.

Naquela casa cheirosa de terra e da lenha do fogão, meus bisavós já eram um tanto erados para nos contar de seus antepassados – nunca contaram. Assim, para nós, o Padrinho e a Madrinha eram igual Adão e Eva: pessoas muito importantes, mas que não tinham passado.



  • Publicado originariamente em 25/11/2001


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