Publicado em: 21 de dezembro de 2019 às 13:55
Atualizado em: 29 de março de 2021 às 21:16
Histórias ao pé da geladeira
Pascoalino S. Azords
Da equipe de colaboradores
Quando pego saudade da minha avó, ao invés de revirar a caixa de fotos eu vou a uma loja de eletrodomésticos. Tenho pena dos jovens que me atendem, coitados, tão necessitados de fechar uma venda. Fico mais empenado ainda quando um deles me chama de patrão. A abordagem começa com uma pequena mentira: digo que estou vendo geladeira para comprar, o que é meia verdade. Ver é uma coisa, comprar é a metade falseada que faz o vendedor me chamar até de doutor. Ver geladeiras é algo inconseqüente como flertar. Comprar já é se casar com o bem. Não é à toa que as geladeiras vêm vestidas de branco como as noivas.
Perguntar faz parte do jogo erótico que é a compra ou a venda de qualquer coisa. No caso de uma geladeira, por exemplo, o vendedor deve permitir que a parte comprante abra a porta ao menos uma vez para conferir a sinceridade das borrachas intactas. Pois quando as portas se abrem acaba a minha farsa. A venda nunca consumada termina ali. O cheiro de uma geladeira nova é tudo o que eu preciso para me transportar até a cozinha da minha avó Alice.
A casa da Rua 15 tinha luz elétrica, água encanada, e o pé-de-bode do meu avô que posava na rua. As casas, como as igrejas de então, não tinham garagem. Pouca gente sabia dirigir, inclusive os improváveis ladrões de automóvel. Minha avó criava um louro no palanquinho da caixa d´água e uns santos nas paredes da casa, que mudavam de cara conforme a gente passava. Sentado na caixa fresquinha da cisterna, eu comia feijão com farinha de mandioca. Era um pratinho de ferro esmaltado que minha avó enchia de novo para eu crescer logo.
A primeira geladeira chegou à casa da Rua 15 numa daquelas tardes infernais. Na véspera, o Amerquiz, gerente da Pernambucanas, tinha ido embora criar os filhos num lugar mais fresco. Pois, enquanto carregavam a mudança do Amerquiz, o motorista do caminhão não cozinhou dois ovos enterrados na areia? Como nem todo mundo podia ir embora, meu avô comprou uma geladeira. E comprou também uma garrafinha de suco de maracujá para o sorvete inaugural que, pacientemente, as crianças esperaram gelar.
No Paraná, na casa da minha avó Carmem, poitava uma geladeira tocada a querosene. O barulho até que não era problema naquela casa de espanhóis, o difícil era entrar num entendimento com a hora de abrir e fechar a porta do refrigerador à base de um motor a explosão. A geladeira da minha avó Carmem funcionava como esses cofres programados das agências bancárias que têm hora para abrir e só guardam o que não nos diz respeito.
No Paraná, em volta da geladeira, tinha mais histórias de assombração e especulações sobre o noticiário policial da Rádio Atalaia. O mal ainda era uma coisa distante que só acontecia aos outros, e, na falta de um mal maior, a gente tinha medo dos mortos.
Na casa da minha avó Alice, os causos vinham mesmo da redondeza, do mato, quase sempre de pessoas conhecidas e ainda bem vivas. A história que eu mais gostava era a de um colega de escola do meu pai que tinha lutado contra a morte durante 72 dias numa clareira entre Corumbá e Santa Cruz de la Sierra, onde ele conseguiu pousar o seu Cessna 140. O caso teve repercussão internacional, mas o nome da vítima era pronunciado com certa familiaridade na casa dos meus avós. Os detalhes da tragédia que comoveu o país eram repassados todas as noites, ao lado da geladeira, enquanto meu tio Manoel raspava uma latinha de massa de tomate como se fosse um potinho de sorvete.
Meu pai dizia que se eu comesse tudo para crescer logo e ficasse quieto enquanto os mais velhos falavam, ele me levava para conhecer o túmulo do seu amigo no cemitério da Ercília, em Rio Preto. Eu tinha duas escolhas: aceitar ou apanhar. E, de fato, alguns anos mais tarde, ele cumpriu a sua parte no trato. Vi então milhares de copos d´água colocados por misericórdia sobre a laje sepulcral de um homem que morreu de sede perdido na selva boliviana. Aqueles copos d´água fora de hora e de lugar haveriam de me marcar para sempre. Muito mais do que a aguinha benta que pingava do sovaco do Cristo Redentor de Rio Preto, que meu pai, aproveitando a viagem, também me levou para ver.
* Publicada originariamente em 17/02/2002
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