CULTURA

Geraldo Machado: ‘Traças’

Geraldo Machado: ‘Traças’

Publicado em: 09 de março de 2020 às 20:26
Atualizado em: 30 de março de 2021 às 11:58

Traças

* Geraldo Machado

Escrevo estas mal traçadas linhas com um único e despretensioso aproveitamento. Pretendo saber como a traça consegue entrar no livro guardado na estante, de pé, fechado. À primeira vista — e a não ser a melhor juízo —, que abra um caminho, no modo da minhoca que engole a terra para cavar o seu metrô.

Sei que a traça tem no intestino uma enzima, a celulose. O cupim faz na madeira o estrago que a traça faz nos livros e, por extensão, no papel. Tanto a madeira e, também, o papel, têm a mesma substância no organismo, a celulose: a traça e o cupim se alimentam dela, exclusivamente. Para o cupim, temos os cupimicidas; para a traça, a naftalina.

O primeiro, veneno, mata; a naftalina, espanta e faz a traça sair da estante para o guarda-roupa. Outra curiosidade me aflige: como a traça mata a sua sede? Da umidade natural da atmosfera? Quando eu vejo uma traça arrastar o seu casulo que ela mesma urdiu, consigo matá-la facilmente com uma forte pressão da unha. Ela, sem o casulo, foge num zás; não dá tempo e, atingi-la, é uma façanha. Ela sai do livro e muda para as gravuras e os retratos nas paredes. Quando a gente percebe já é tarde, a traça roeu toda a tinta, seja de cor ou branco e preto. Perdemos a velha fotografia da família ou a reprodução dos girassóis de Van Gogh, ou as mulatas de Gauguin.

Quando me lembro da naftalina, não sei por que, lembro-me do Nelson Rodrigues em “A Vida Como Ela É”. Dez anos de pertinácia monótona e desesperadora para dizer que “era sempre a história de uma infiel”. “Lacerda dizia de mim o diabo”, publicava na “Última Hora”. Carlos Lacerda respondia no mesmo nível, na “A Tribuna da Imprensa”. Briga de foice do talento nesse entrechoque inteligente e ousado.

“Memórias” é um livro dedicado aos filhos. É também “A Menina Sem Estrela”, subtítulo do livro que dedicou aos seus filhos: Joffre, Nelson e Daniela. No VI Capítulo, vejam só o que ele escreveu: “O sujeito está berrando: — A Nova Prostituição do Brasil! A Nova Prostituição do Brasil! E erguia um folheto, só faltava esfregar o folheto na cara da pátria. Todavia, não me espanto, ninguém se espanta.

As pessoas passam e nem olham. Há qualquer coisa de vacum no lerdo escoamento da multidão. O camelô continua empunhando o folheto como um estandarte dionisíaco: — A Nova Prostituição do Brasil: A Nova Prostituição do Brasil.” “Um turista que por ali passasse, havia de anotar no seu caderninho: “O Brasil acaba de promulgar a sua nova prostituição”.

Leitor, que num dia frio e chuvoso como este está encorujado em casa, fora do guarda-roupa e da naftalina do Nelson Rodrigues, só pode ler, de maneira dionisíaca, o livro “Memórias”. Se o autor dedicou aos dois filhos e à filha, por que você, homem ou mulher, não podem, não devem lê-lo? O Carlos Lacerda, creio eu, leu e gostou, amolou a sua foice. Os ginasianos do internato passavam de mão-em-mão a “CARNE”, romance de Julio Ribeiro, desgastado, puído como revista de salão de barbeiro.

Corriam pelos corredores com aquele bagulho na barriga como se fora um filhote de canguru. Ah, se o padre disciplinário visse um aluno com aquela “bomba-relógio”. Levava um pescoção e, por mal dos pecados — e a carne é fraca — o Bispo envia para o pai do distraído, uma carta de advertência que terminava com uma sonora advertência. No caso de reincidência — expulsão sumária.

Pense bem com que cara esse aluno de 15 anos, caipira mas de rija obediência aos pais, chegaria em casa nas férias? Tem mais, a confissão de todos os sábados. Hoje, nesta provecta idade, vivido, porém não ido, como vejo e julgo esse tempo de ginásio? Foi bom pra mim. Lá eu recebi educação e um bom curso secundário. Professores muito cultos, mestres e amigos, me deixaram saudades que alimentam hoje as minhas cogitações.

O colégio tinha uma boa biblioteca mas, quem recomendava (não escolhia) o livro era o professor. Exigia sim — o comentário e corrigia os erros de português, isto é: todos nós podemos ler Nelson Rodrigues sem cascudos nem confusão de Constituição com Prostituição — nem pinga com limão… Que faz, ou melhor, cometem esses delitos, são os políticos de profissão, do “mensalão”.

Com o tempo, é comum aos idosos remanescentes daquele padrão cultural, esquecer, claudicar (queixo disso a minha nora Cláudia e aos meus netos), e até com os meus amigos mais chegados. Todos, unânimes, me aconselham, a não parar de andar, pensar e escrever. Andar não é correr maratona; pensar, não é confundir, encucar, ter idéia fixa: encafifar.

Escrever não é sair por aí a ulular o óbvio. Não é imitar o Nelson Rodrigues: ele vai me dizer, de novo, que toda a unanimidade é burra, dá zebra. Só meus amigos, tenho com ele, o Nelson, algo em comum, ouçam-no, lá do Recife, Pernambuco, donde proveio: — “Toda minha primeira infância tem gosto de caju e de pitanga”.

A minha infância, dizia Nelson, “…é varrida de tias”. Eu também tive tia. As traças não traçaram os livros que eu li. Não roeram a minha memória. Não uso naftalina no guarda-roupa, nos girassóis de Van Gogh nem nas mulatas de Gauguin. 

* In memoriam

* Publicado originariamente em 2018
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