CULTURA

Pascoalino: ‘Os cegos também esquecem'

Pascoalino: ‘Os cegos também esquecem'

Publicado em: 09 de março de 2020 às 14:53
Atualizado em: 29 de março de 2021 às 21:13

Os cegos também esquecem

Pascoalino S. Azords

Da equipe de colaboradores

Os cegos faziam a prova separadamente e o Airton era sozinho em uma sala onde cabiam quarenta sentados. O Airton fazia tudo o que os outros da equipe faziam — até faltava ao serviço de vez em quando. Mas agora, na hora da avaliação, era apartado daquela maneira infame. Risco de cola não havia já que o seu teste vinha e voltava em braile. Para não dizer da soberba dos cegos, que preferem morrer na dúvida a apelar para um colega do lado. Eu o avistei pela porta quase fechada daquela imensa sala quase vazia. Era igual, depois de todos aqueles anos: um corpo curvado sobre a bancada, a mesma maleta de couro cru, a bengala de alumínio que ele dobrava como uma cobra de vidro, tudo arrumadinho no chão, à sua direita, como sempre o vi, onde quer que ele se sentasse.

Airton era previsível da hora que chegava à hora que saía da repartição. O mesmo número de passos da porta do elevador até a primeira dobra à direita e depois em ziguezague de passinhos medidos até o seu posto na estação de rádio, a PYH-6. Vinha e voltava de Sapopemba dividindo espaço no ônibus com uma gente desconhecida e sempre atrasada, com os mesmos cobradores e motoristas camaradas que ele identificava pela voz. Pontual nos plantões diurnos e noturnos, nos finais de semana, dias santos e feriados. Primeiro o Airton tirava da maleta a marmita preparada pela mãe, depois, o seu revolvinho 22 que devia incomodar na cinta. Só então trocava o seu paletó de cego pelo nosso jaleco comum, passava o dedo médio sobre o mostrador do seu relógio de cego para, finalmente, sentar-se onde devia estar o telégrafo. Levava-se tão a sério que eu nunca fui capaz de imaginar (nem de perguntar) o que ele fazia nos 30 dias de férias.

Pelo telefone (de casa ou do serviço, quando estava de plantão), o Airton apresentava um programa radiofônico das duas às cinco da madrugada. Dava em primeira mão as manchetes dos jornais que ainda não tinham chegado às bancas, dava conselhos para quem estivesse interessado em viver melhor com a família e anunciava três músicas na seqüência, tempo mais do que suficiente para trabalhar um pouquinho ou ir tomar um café na copa. Isso tudo sem jamais prejudicar o bom andamento do serviço. O nome do programa era “Na madrugada com Cristo” que eu, mordido de Luis Buñuel naquela época, traduzia para “Na cama com a virgem Maria”.

Vinte e cinco anos depois, eu o reencontrei na Academia fazendo testes para promoção na carreira. Pelo pouco que o conhecia eu era capaz de apostar que o Airton só iria entregar a prova quando desse o sinal — nem um minuto antes — e ele não me desapontou. Esperei que o professor deixasse a sala para ir cumprimentá-lo. Ele não se lembrava de mim. Pudera, eu não era aquela figura ímpar, enorme e branca, com a boca sempre úmida de manteiga de cacau, a levantar suspeitas de toda sorte de dificuldade, desde a hora em que um cego acorda até o seu retorno à morte diária em que sonha. Eu era apenas uma voz e um nome que ele não recordava, ou fingia não recordar.

Ele me disse que ainda morava em Sacomã, mas sem a mãe. Só quem conhece a casa de um cego que vive sozinho pode entender a dimensão desse detalhe. A sala de um cego sozinho com seus móveis essenciais, sem o mau gosto da maioria das pessoas que enxergam. A geladeira, a varanda de um cego sozinho, vazia de passarinhos de gaiola ou cães importados de terras distantes para infernizar a vida de quem não é surdo. A mãe do Airton era morta havia quase dez anos. Eu disse que estava na mesma cidade do interior, com os filhos criados, o que lhe devia ser tão impensável como a casa de um cego sozinho para aqueles passageiros sempre atrasados que com ele dividia o ônibus.

Tornei a ver o Airton na cantina da Academia e, à distância, me lembrei de como ele contou que ficou cego. Era uma das poucas histórias que ele tinha para contar. Dezenove andares acima do nível das lixeiras entupidas, a janela se abria sobre uma cidade que não pegava no sono. E o farol da Avenida Ipiranga se abrindo e fechando para ninguém se parecia com a sua história repetida. Nenê de colo, o Airton pegou uma conjuntivite brava que não deixava a casa dormir. No meio da noite a mãe, exausta, acabou trocando o vidrinho do colírio pelas gotas de um ácido que o marido punha nos calos do pé. Quanto mais a criança berrava, mais a mãe acudia com aquele veneno. Quando deu pelo erro, o menino já estava irremediavelmente cego. Para não matar a esposa, o pai sumiu no mundo para nunca mais voltar.

Alguns anos depois, li uma história como essa no folhetim Meu Destino é Pecar, que Nelson Rodrigues escreveu sob o pseudônimo de Suzana Flag, fato sem maior importância que só vem provar que as coincidências não só acontecem como os cegos também devem mentir como nós. 

* Publicada originariamente em 21/07/2002
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