Publicado em: 21 de março de 2020 às 09:17
Atualizado em: 29 de março de 2021 às 21:12
As balas de efeito
moral de Regina Casé
Pascoalino S. Azords
Da equipe de colaboradores
Quando entre as décadas de 1970 e 80 os índices de violência atingiram níveis insuportáveis na América, os estúdios de Hollywood geraram dois personagens que faziam com as próprias mãos o que todo americano violentado gostaria de fazer não fosse o medo de ir para o inferno. Clint Eastwood e Charles Bronson deram vida a esses justiceiros que já nasceram grisalhos e feridos nos próprios brios. Dirty Harry (Eastwood) rendeu sete filmes enquanto Paul Kersey (Bronson) satisfez o seu desejo de matar numa série de cinco filmes. New York era, então, a cidade mais violenta do mundo. Mas depois do 11 de setembro de 2001, quando esses filmes ficaram um tanto quanto obsoletos, Dirty Harry e Paul Kersey foram definitivamente embalsamados e despachados para o museu da sétima arte. Os inimigos que os americanos agora precisam eliminar se escondem em cavernas, andam a cavalo, não fazem a barba e ouvem radinho de pilha. Dizem que Hollywood já quis fazer (mas o Pentágono em obras não permitiu) uma superprodução de 400 milhões de dólares em que Sylvester Stallone, sozinho, derrota Bin Laden e os 40 talebãs. Mais ou menos como Rambo fez com os vietcongues depois que os EUA perderam a Guerra do Vietnã na vida real.
Se o cinema americano é uma indústria que movimenta montanhas de dólares, a TV brasileira pressupõe milhões de boas almas – que outro nome dar a essa massa que se satisfaz com tão pouco? E se a TV brasileira não pode nos dar um Dirty Harry, deu-nos uma Regina Casé. Há duas ou três semanas o brasileiro está se vingando (dos próprios brasileiros) com Regina Casé aos domingos no Fantástico. Pode ser uma simples coincidência, mas aproveitaram até para dar férias ao doutor Dráuzio Varella. Um povo que tem Regina Casé não precisa de médico – nem de remédio!
No primeiro programa Regina Casé esculhambou o brasileiro que emporcalha o mundo que podia ser limpo e lindo. Depois se vingou dos espertos que utilizam o acostamento para levar vantagem sobre a fila de motoristas congestionados. No domingo passado espinafrou a madame que leva o cachorro para estercar a calçada ao invés de recolher o cocozinho numa sacola – como manda a Lei. Desde Bem Brasil que eu digo: Regina Casé é a grande mulher da televisão brasileira. Não tivesse aparecido pelada nuns filmes do passado poderíamos saudá-la com a grande dama da TV, ou a padroeira dos telespectadores. Estudante da USP gosta do Chacrinha, do Zé do Caixão – paciência! Para mim, todo o Chacrinha não vale um só programa da Regina Casé. Personagem de si mesma, sem uma única bala na agulha, sem uma espingardinha de rolha, ela consegue vingar todo um continente de otários.
A violência não diminuiu na América por causa de séries como Dirty Harry e Desejo de Matar. Uma Regina Casé sozinha também não faz verão, mas a sua aparição semanal traz muito mais resultado do que mandatos inteiros de certos políticos que se elegem com uma estrela de xerife no peito. O esculacho de Regina Casé é o troco dos otários que buscam a lixeira, que respeitam a fila, que recolhem o cocô do próprio cão e amanhã, quem sabe, dos que não têm água na torneira porque as mulheres da baixada precisam lavar a rua com água tratada.
Cada geração tem a sua Princesa Isabel, a sua Betty Friedan. Hoje, todas as minhas fichas, todas as minhas preces estão depositadas aos pés de Regina Casé. Nós, os otários que não temos água para cozinhar, lhe imploramos. Nós, os fedidos que não tomam banho para ir à escola, suplicamos. Regina Casé rogai por nós. Que o Clint Eastwood mora longe e, como o meu cavalo, só fala inglês.
* Publicada originariamente em 25/08/2002
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