CULTURA

Beto Magnani: ‘O ônibus'

Beto Magnani: ‘O ônibus'

Publicado em: 23 de março de 2020 às 15:27
Atualizado em: 30 de março de 2021 às 00:34

O ônibus

Beto Magnani

Da Equipe de Colaboradores

— Nunca imaginei que viveria para ver a profecia do Raul Seixas se concretizar.

— A terra parada. Ninguém na rua. Todos reclusos. Patrões, empregados, donas de casa, padeiros, guardas, ladrões, padres, pastores, professores, médicos, atores, todos, absolutamente todos, sem sair para a rua. Apenas ratos, baratas, pombos e morcegos indo e voltando livremente, sem medo de gente.

No ônibus estava apenas eu e os dois seres encantados com a profecia. Eu era o motorista. Não estava exatamente a fim de conversar, mas não resisiti.

— Vocês pegam sempre esta linha? — perguntei.

— Hoje é a primeira vez. — respondeu um deles.

— Por que? — perguntou o outro.

— Porque nunca tinha visto vocês. — respondi.

— Eu não ando de ônibus. Peguei hoje porque foi o que passou. Me surpreendi. Pensei que só eu estaria na rua. — explicou o primeiro.

— Eu também. Fiquei surpreso em ter um ônibus passando e ainda encontrar mais alguém. — emendou o segundo.

— Pelo visto somos só nós três. O meu é o único ônibus na cidade. Quis ver como é sem ninguém na rua. — expliquei.

Eles continuaram conversando sem falar comigo:

— Eu só ando de Uber.

— Eu não. Não ando mais de Uber. Voltei para o taxi.

— Por quê?

— Porque comecei a sentir saudade do bom e velho taxista. Das boas histórias. E estou tendo a sorte de pegar uns malufistas, como antigamente.

— Existe ainda?

— Sim, claro. Originais. Citam o minhocão e tudo. Falam até do sinto de segurança que o Maluf moralizou. E não é um nem dois, são vários. Estou realmente tendo sorte.

— Que nostalgia esquisita.

— Quando que um Uber ia saber falar disso? A maioria nem tinha nascido nessa época. Ou tenho o azar de sempre ser um motorista moleque. Não, acho que a maioria é moleque mesmo.

— As vezes é bom ser mais novo. Outro dia peguei um Uber que sabia tudo de Bitcoin. Foi útil. Por causa dele é que comecei a investir nas Criptos moedas.

— Pois o último taxista falou exatamente sobre a queda da bolsa e do bitcoin por causa do Vírus. Mas sem tirar o Maluf da pauta.

— O que é o Maluf perto do que temos hoje? Fichinha. Era só ladrão.

— E o taxista ainda falou uma coisa muito boa; disse que não esperava que os governos colocassem o mercado em risco com ações para preservar vidas. Que o mundo esta paralisado pela sobrevivência.

— O meu Uber de ontem também falou uma coisa ótima. Que no capitalismo as pessoas trabalham no que não gostam para poder comprar o que não precisam.

— Essa é velha.

— Mas eu não conhecia. E provavelmente o seu taxista também não.

— O taxista falou bastante da nossa situação, muito inteligente. Disse que enquanto era só na China a bolsa não caiu, mesmo com a sua importância econômica. Ele entende bem do assunto. Lembrou que o mercado só desestabilizou quando a peste chegou à Europa e começou a ameaçar os Estados Unidos.

— O Uber brincou que no começo o medo era só de morrer toda a mão de obra barata da china.

— O taxista refletiu ainda, logo depois de falar do minhocão do Maluf, que hoje em dia a vida tem mais valor do que naquela época. As empresas antes tinham nomes pomposos e ostensivos e hoje têm nomes ligados à vida e ao bem estar, como Vivo, Claro, etc. Muito boa sua colocação.

— Um Uber me falou algo parecido. Que hoje as empresas que promovem o encontro e as relações humanas, as redes sociais, faturam e valem mais do que bancos e produtoras de combustíveis. Comentou que tem a ver com a era de Aquário.

— O taxista de ontem falou que a neta dele disse uma frase muito boa sobre o dia de hoje. Ela disse assim: “Vô, amanha cedo, quando o céu acordar eu não vou para escola porque ninguém vai poder sair na rua.” Não é legal? Quando o céu acordar...

— Legal. Já motorista de ônibus nem pode conversar, é proibido. Ele só houve.

Pararam de falar e ficaram me olhando. Senti um certo constrangimento. Não falei nada. Olhei no retrovisor e vi que os dois haviam se transformado em dois vírus gigantes. Continuaram olhando pela janela. Eu ignorei a metamorfose e continuei olhando a cidade vazia, só com bichos escrotos passeando fora dos esgotos. Também estava feliz por ter vivido para testemunhar esse dia profético. O dia em que a terra parou. Acordei.

(Magú)



  • Publicado na edição impressa de 15/03/2020


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