CULTURA

Profissão: motorista do prefeito

Profissão: motorista do prefeito

Publicado em: 03 de maio de 2020 às 13:51
Atualizado em: 30 de março de 2021 às 06:16

João Viol, 83, transportou sete

ex-prefeitos de Santa Cruz para várias cidades

brasileiras e viajou a Brasília com um Fusca

Sérgio Fleury Moraes

Da Reportagem Local

Ele deve ter rodado milhões de quilômetros em diferentes carros oficiais, conviveu com prefeitos e autoridades de diferentes partidos e viu com os próprios olhos o crescimento de Brasília, a capital federal. Hoje aposentado, João Viol, 83, teve uma única e inusitada profissão durante 32 anos: motorista do prefeito. Antes, trabalhou em bar, cerealista, virou caminhoneiro e vendedor de melancia. Mas foi servindo ao gabinete do prefeito que sua vida se transformou. João Viol passou a conhecer políticos importantes e o uso de terno virou rotina.

O impressionante na vida deste pacato santa-cruzense, que nasceu no bairro rural da Figueira e cresceu no distrito de Sodrélia, é que ele passou incólume os 32 anos de trabalho como funcionário público. “Nunca bati um carro e nem levei uma multa sequer”, diz, orgulhoso.

João Viol ingressou no serviço público municipal em 1967, numa época em que não havia concurso público. O prefeito era Carlos Queiroz. “Pedi a um amigo da prefeitura se dava para arrumar um serviço. Ele anotou meu nome, mas não deu certeza”, lembra.

CRISTO REDENTOR — Viol, com Aniceto e Hermelinda no Rio de Janeiro



Semanas depois, Carlos comprou um carro zero quilômetro para a prefeitura, que deveria ser retirado em São Paulo. O motorista, no entanto, capotou o reluzente automóvel na viagem de volta. “O carro nem chegou a Santa Cruz. Ficou destruído. Aí o Carlos, nervoso, mandou me chamar”, conta.

Viol, então, virou motorista do prefeito. Ele passou a transportar Carlos Queiroz em viagens para São Paulo e Brasília. Não era muito fácil, pois o veículo oficial era uma Rural Willys, na verdade um utilitário feito para estradas de terra. Carlos, na verdade, não costumava se hospedar em hotéis na capital paulista. “A mãe dele morava perto da avenida Pacaembu. Eu deixava o prefeito e ele me avisava o horário que eu deveria buscá-lo. Enquanto isso, eu ficava na casa da minha irmã, que morava em Santo André”, lembra o aposentado.

Carlos se virava na capital, com amigos ou táxis. O problema, segundo Viol, é que o ex-prefeito era sistemático. “Eu tinha de chegar no horário. Quando apontava na rua, ele já estava esperando”, lembra. Talvez por isso, Viol carrega até hoje um relógio no pulso.

MEMÓRIAS — João Viol foi motorista do prefeito por mais de três décadas



Conhecendo São Paulo

Carlos não fez o sucessor José Carlos Camarinha, que foi derrotado por Onofre Rosa em 1968. No ano seguinte, o novo prefeito era um velho conhecido de João Viol, pois fora seu patrão muitos anos antes, numa máquina de arroz. “Na verdade, eu nunca fiz política para um ou outro candidato. Era motorista e carregava a pasta para o prefeito que estivesse no cargo”, lembra.

Mas Onofre reconheceu o antigo funcionário, efetivando-o no cargo recém-criado de motorista especial do gabinete. Um projeto aprovado pela Câmara garantiu a estabilidade de João Viol. Faltava, porém, uma maior experiência no trânsito já conturbado da metrópole paulista.

“Aprendi tudo com o Lúcio”, conta. Viol se refere ao ex-deputado santa-cruzense Lúcio Casanova Neto, que aproveitava as viagens de Onofre para perambular pelas repartições do governo do Estado em busca de verbas. “Ele me ensinou todos os caminhos. Passei a conhecer São Paulo como poucos”, gabou-se.

Onofre, porém, não quis a Rural Willys como seu carro oficial. Surpreendentemente, o prefeito dos “azuis” comprou um Fusquinha 1.300. “Era um Fusca vermelho. Quando chegou, eu o questionei sobre a cor, que era a usada pelos adversários na política. Ele brincou que iria viajar em cima dos vermelhos”, lembra Viol, rindo.

Com o Fusca, o motorista levou o prefeito várias vezes a São Paulo, Curitiba, Rio de Janeiro e até Brasília. Nas viagens à capital federal, ele lembra que Onofre dormia encolhido no banco traseiro durante o trajeto de quase 12 horas, geralmente feito durante a noite. “Ele chegava e já saía para visitar os gabinetes dos deputados, enquanto era a minha vez de dormir no carro”, lembra.

João não reclamava do Fusca, mas Onofre finalmente percebeu que não era carro para tantas viagens. Comprou, então, uma Variant. Depois, um Volkswagen TL. Eram outras épocas, bem diferentes dos atuais carros importados ou o reluzente Toyota Corolla que serve ao prefeito Otacílio Parras.

Onofre sempre foi um vitorioso. Em 1963, quando seu candidato José Osiris Piedade perdeu as eleições para Carlos Queiroz, fez questão de entregar a chave da prefeitura ao novo prefeito. No entanto, fez uma observação. “Daqui a quatro anos venho buscar de novo”. De fato, venceu as eleições de 1968 — por impressionantes 62 votos de diferença.

João Viol, durante festividade, ao lado do ex-vereador Pedro Queiroz



Joaquim e seu Landau

Em 1973, tomou posse o prefeito Joaquim Severino Martins. Empreiteiro de casas populares e dono da poderosa Cormaf, Joaquim estava se enriquecendo construindo casas para o governo federal. Na época, ele era dono de um moderníssimo e luxuoso Ford Landau, um carro com mais de cinco metros de comprimento. Na época, o veículo oficial da prefeitura já era um Opala.

Joaquim não pensou duas vezes. Passou a usar seu carro particular nas viagens, mas o motorista continuou o da prefeitura. “Era um carrão. Poucas vezes o Joaquim usou o carro da prefeitura”, contou. Severino fez fortuna, foi suplente de deputado estadual pela Arena e um dos maiores construtores de casas do Estado. Chegou a ter um avião bimotor, que pouco usou. “Como Onofre, o Joaquim gostava de desviar os trajetos, para visitar parentes e filhas. Com o avião, isto não era possível, pois dependia de aeroporto e plano de voo. Aí ele disse que aquela máquina não servia — e voltou a viajar de carro”, disse Viol.

TERNO — Viol em restaurante, ao lado do ex-prefeito Aniceto Gonçalves



Em 1977, Viol passou a ser o motorista do prefeito Aniceto Gonçalves. “Ele era muito metódico. Viajava de terno e os horários deveriam ser rigorosamente respeitados. Seu único defeito era demorar no banho. E demorava mesmo”, lembra João Viol.

Um dia, Aniceto demorou demais, quando estava hospedado no hotel Columbia, em São Paulo. Viol o aguardava no saguão, mas estranhou a demora superior a duas horas. Preocupado, pediu para um funcionário do hotel subir até o apartamento. No corredor, já era possível ouvir os chamados de Aniceto. O prefeito, sem querer, havia trancado a porta do banheiro e ficou preso durante pelo menos uma hora.

O motorista ainda transportou Clóvis Guimarães, Manezinho e Adilson Mira. Foi na gestão deste último que as viagens a Brasília de automóvel diminuíram, já que o avião passou a ser o meio de transporte preferido. “Mas eu ia buscar os prefeitos em São Paulo”, conta.

Com Manezinho, João Viol se lembra de uma passagem curiosa. Na véspera de uma viagem a São Paulo, ele procurou o prefeito e alertou que o carro oficial precisava de pneus novos. Manezinho pediu ao chefe de gabinete para verificar e a resposta foi que os pneus ainda durariam algum tempo. Na rodovia Castello Branco, um deles estourou. Com a agenda atrasada, o prefeito resolveu ajudar João Viol na troca do pneu. A chave de roda quebrou e atingiu a cabeça de Manezinho. Ao invés da audiência em São Paulo, João Viol foi parar num hospital para socorrer o prefeito. Manezinho perdeu a audiência e ganhou alguns pontos na testa.

Como motorista, João Viol fez tantas viagens a Brasília que acompanhou o crescimento da capital federal. A cada viagem, a capital ganhava algum monumento diferente, pelas mãos do genial Oscar Niemeyer. Nas décadas de 1970 e 1980, vários prefeitos se cotizavam no aluguel de uma casa em Brasília. “Ficava mais barato e era ali que a gente dormia. Naquela época, hotel era muito caro”, lembra.

Conheceu também autoridades históricas, como os presidentes da ditadura militar, Tancredo Neves, José Sarney, senadores, ministros e deputados. Garante, entretanto, que nunca levou nenhum prefeito a boates ou outras casas noturnas. Verdade ou não, João Viol permanece fiel a tantos prefeitos, mesmo aposentado.

ANTES DA EXPLOSÃO — Franciscato, o presidente Geisel e o governador Paulo Egydio Martins durante inauguração da avenida Nações Unidas em Bauru



O dia em que Viol levou

o ‘presidente’ Figueiredo

Visita de Geisel a Bauru

quase vira uma tragédia

Além de conhecer inúmeras personalidades políticas nos 32 anos em que foi motorista do prefeito de Santa Cruz, João Viol foi protagonista de um episódio que quase se transformou em tragédia. Era o ano de 1976 e o então prefeito de Santa Cruz, Joaquim Severino Martins, estava em Bauru para recepcionar o general Ernesto Geisel, o penúltimo comandante da ditadura militar. Joaquim, como de costume, convocou o motorista da prefeitura para dirigir seu luxuoso Ford Laudau LTD.

Para os supersticiosos, a data era terrível: sexta-feira, 13 de agosto. Geisel levou sua comitiva a Bauru para inaugurar a avenida Nações Unidas, hoje uma das principais artérias centrais da cidade. Além de ministros, do governador paulista Paulo Egydio Martins e do deputado bauruense Alcides Franciscato, fazia pasrte do grupo o chefe do SNI (Serviço Nacional de Informações), João Baptista Figueiredo. Ele seria o sucessor de Geisel na presidência e o último general da ditadura militar.

João Viol estacionou o Landau numa via transversal e ficou aguardando. Joaquim Severino participou da cerimônia, se aproximou de Geisel e, no final, veio caminhando em direção ao carro com a mão no ombro de um homem com óculos escuros. Era João Figueiredo. Viol imediatamente abriu a porta traseira e o general entrou. “Eu transportei um presidente da República”, lembra o motorista.

Na verdade, Figueiredo estava pegando uma carona no carro de Joaquim, rumo a Jaú, onde almoçariam antes de cumprir outro compromisso. Ao chegar ao restaurante, porém, João Viol se assustou com a chegada de dezenas de agentes armados e policiais. Fizeram perguntas a todos e o presidente Geisel saiu imediatamente.

Acidente muitas quadras acima da Nações, que pode ter causado a explosão com vazamento de combustível



ATENTADO? — Avenida Nações Unidas, de Bauru, após explosão em 1976



O fato é que, minutos após deixar a avenida das Nações, em Bauru, a comitiva presidencial não presenciou uma enorme explosão em sequência que destruiu várias quadras. Apesar de milagrosamente ninguém ficar ferido, o caso foi manchete em todos os jornais do País. A princípio, suspeitou-se de um atentado contra o presidente Geisel.

Há poucas fotos da época porque o regime militar requisitou todas as fotos — inclusive os negativos — dos jornais de Bauru. Somente anos mais tarde é que descobriu-se que um acidente, ocorrido a várias quadras da avenida Nações Unidas, pode ter provocado a catástrofe. Um caminhão-tanque tombou e milhares de litros de gasolina escorreram pela tubulação, que passava debaixo da avenida. O que provocou a combustão, porém, nunca foi devidamente esclarecido.

* Colaborou Toko Degaspari

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  • Publicado na edição impressa de 26/04/2020


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