CULTURA

Geraldo Machado: 'A cordinha e os acordões'

Geraldo Machado: 'A cordinha e os acordões'

Publicado em: 14 de maio de 2020 às 00:26
Atualizado em: 30 de março de 2021 às 03:52

A cordinha e os acordões

Geraldo Machado *

“Vamos tentar lavrar

uma crônica bem

confeccionada, com

esmero de agradar —

que é tempo”.

Eça de Queiroz — Cartas.”

Vamos nos inspirar em Eça: eu que escrevo, você que lê — que é tempo. Dizia ele a Ortigão, numa carta: “Há quanto tempo eu lhe devo um ar da minha graça. Recebi sua carta e passei a estar feliz”. Meu leitor curioso que, a meu ver, já não se lembra mais deste “mendigo da ignorância” (esta é do Eça) — vamos estar mais tempo com o gênio de Póvoa de Varzim (1845-1900), já que “esta crônica devia trazer iluminuras para ressaltar”. Eça dizia a Ramalho Ortigão: “A melhor maneira de gozar a civilização é o canto do lume, de chinelas”. Noutro espaço, dizia: “…entre as duas janelas que respiravam para o rio”. A minha — leitor atento — respira para a rua. Como tudo é estranho! Aqui todos latem para a lua — do outro lado, seco, sem rio, há um canil… Reticências à parte, a carta de Eça a Ortigão termina assim: “Aqui fica o coração do amigo onde você pode se alojar”. Você também, leitor, se esconda — em todo caso.

Com o Eça, que nascia em Póvoa de Varzim (1845), cá, no mesmo ano, nascia meu avô em Sant’Anna do Sapucaí, Minas Gerais, de pai português — Gonçalves Machado. Deste bisavô comum, o professor Wilson —– ao princípio —, tirou o Gonçalves. Eu, ao cabo, tirei o Machado — somos, pois, “primus inter pares”. No mesmo sítio, em 1919, tiramos um “par”ou “ímpar”, ele ganhou — nasceu primeiro. Apesar da primazia, fomos sempre muito iguais, escrevemos no mesmo DEBATE. Se ele aqui estivesse, em coro, repetiríamos o conselho de Eça: “Vamos desbastar esse português sem gramática e escrever mais uma crônica esfolada”. Aqui está, leitor cansado, “A cordinha e os acordões”.

Depois de tantas “phrases banales”, vou contar uma passagem da história do meu pai Benedicto e do meu avô Possidônio — que é tempo. Sabem os que me leram, traços da vida desse contemporâneo de Eça (este — nas letras — em Coimbra; aquele, na lida da foice e do machado do feudo do Coronel Batista Botelho — no Guarantã).

Vovô era sem terra. Mas, homem do tempo em que, para ter a terra tinha de trabalhar e derrubar a mata que a vestia. Trabalhou, para isso, ao princípio, muitos anos, na posse do coronel Batista Botelho, como agregado. Batista Botelho foi casado com a sobrinha do meu avô, Guilhermina, filha de Francisco Narciso Gonçalves (Chico Narciso). Ele não juntava o Machado ao sobrenome, mas era irmão do Possidônio. Vieram juntos, moços, de Minas para Brotas, Lençóis, São Pedro do Turvo, Santa Cruz do Rio Pardo — no século 19. As terras do coronel (de Mandaguari a Cocais) chegavam até ao Lageadinho, margeando o Paranapanema. Meu avô morava numa gleba com o nome de “Fazendinha”, pertencente à Ilha Grande — hoje Ipaussu. Ficava perto das margens do rio. Não vou mais longe: não quero invadir o terreno do professor Magali, que já recontou e ampliou essa história bonita.

Os filhos — quatro homens e duas mulheres — foram espalhados fora do ermo para aprender (como dizia o meu amigo Jerônimo: da enxada aos mais finos trabalhos de agulha). Os homens, todos, aprenderam (à força da palmatória) a ler e escrever com o mestre-escola Constâncio Carlos da Silva, sergipano, pescador de surubim no rio Pardo. Mais tarde, com seus 12 anos, já “formado” em palmatórias e surubins, voltou pro mato. Não cabiam na gleba — eram tantos e não tinham a terra. Meu avô deixou o menino para trabalhar com um comerciante de Ilha Grande, italiano, Américo Blóes. Nos fins de semana (quando não havia serviço), ia pra casa dos pais, na Fazendinha — uma légua, a pé.

Uma tarde, livre dos deveres, o menino tomou o rumo de casa. No caminho, por trilhos de animais, caminhava com a trouxinha e duas mudas de roupa pra mãe lavar no rio. Na metade do caminho, fora do trilho havia uma casinha tosca, beirando uma capoeira de sapuva. O perna-fina viu, já bem adiante da casa, uma cordinha de bom tamanho. Distraído, traído pela inocência, pegou a cordinha, fez um laço e caminhando brincando de laçar, debalde e sem malícia. Chegou em casa, e já ia fundo o sol. Viu os pais e tomou a bênção, contrito no gesto e cansado das pernas. No ato de pôr a trouxa e a cordinha num banco rústico, notou o olhar perscrutante do pai, que perguntou: “Benedicto, quem te deu este lacinho?” Meu pai gaguejou e tremeu nas canelinhas finas. Por fim contou, sem mentiras, sem evasão, toda a história. Meu avô, sem drama, sereno e peremptório, disse à minha avó, lá na cozinha: Siá Veridiana, veja a janta pro Benedicto que ele vai levar a cordinha lá onde ele achou. “Pelos Santos do Calendário!” — teria dito Eça, lá na Póvoa. Meia légua (pra ir e pra voltar), noite sem lua, foi meu menino pai, quietinho, sem resmungos, levar a cordinha no trilho e, assim, nunca sair dos trilhos e nunca usar cuecas como se fossem burras ou cofres como fazem hoje essas hostes, essas chusmas de políticos mensaleiros sem envergadura. Com a minha avó Veridiana não tinha cordinhas nem acordões. Fritou um ovo, esquentou o arroz, o feijão, o torresmo. A farinha de milho e uma broa de fubá deram força nas pernas do menino da roça. Hoje, que história têm os netos para ouvir e para contar dos Possidônios e das Veridianas?

“Este moço escreveu com cipó”, disse Joaquim Nabuco quando pela primeira vez leu Euclides da Cunha. Eu tive, tenho cipó no meu mato. Faz parte da diversidade verde e vegetal que vem desde o avô austero. Há o cambira, o guaimbé — e outros. Tenho vontade de dar a aposentadoria às canetas (como fez Dedé Correa), à minha Olivetti, às “Bics” e às bisonhas, e escrever com cipó. Elas são todas foras-da-lei, rombudas. Vou escrever com o cipó cambira. Como fez Anchieta, em língua-geral, nheengatu. Trocar os “Serões Gram-maticaes”do Dr. Ernesto Carneiro Ribeiro (que deu tanto trabalho a Rui Barbosa), pela “tramática”nasal do Cunhambebe, tuxaua dos tupinambás. Esquecer as CPIs e esperar o astronauta mais caro do mundo (10 milhões de dólares pela carona), para perguntar se é a verdade, lá de cima, o que disse Anatole France: A terra é uma gota de lama e o homem — cerâmica pensante.

* Publicado originariamente em 2004

* In memoriam



  • Publicado na edição impressa de 03/05/2020


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