CULTURA

No tempo das telefonistas

No tempo das telefonistas

Publicado em: 24 de maio de 2020 às 14:16
Atualizado em: 30 de março de 2021 às 11:24

Num passado considerado recente, na

era das telefonistas, as ligações podiam

durar horas ou até dias para se completar


Flâmula homenageia funcionários da CBT de Santa Cruz



Sérgio Fleury Moraes

Da Reportagem Local

Não precisa ser muito jovem para nem se lembrar de um tempo em que falar ao telefone era difícil, muito diferente da tecnologia atual, em que vídeos, áudios e imagens são compartilhadas em questão de segundos. No entanto, até 1978 as ligações eram demoradas e contavam com a ajuda de telefonistas, acionadas por uma manivela no telefone. Acredite ou não, uma ligação para São Paulo poderia durar dias nas décadas de 1960 ou 1970.

Em Santa Cruz do Rio Pardo, os serviços telefônicos eram prestados pela CTB — Companhia Telefônica Brasileira —, empresa de capital canadense, criada em 1923, nacionalizada em 1956 pelo presidente Juscelino Kubitschek e extinta pela incorporação com a Telesp em 1973. Quando a automação da telefonia chegou a Santa Cruz do Rio Pardo, em 1978, o serviço já era prestado pela estatal Telesp — que em 1998 foi privatizada e comprada pela atual operadora Vivo.

SAUDOSISMO — Nair, Maria Elisa e Dinorá, as últimas telefonistas de Santa Cruz, reveem fotos e documentos



A automação foi um avanço tecnológico sem precedentes, mas também marcou o fim das telefonistas. Foi o momento em que o usuário não precisou mais recorrer a uma telefonista para completar uma chamada local ou interurbana. Bastava, nos primeiros aparelhos, discar o número. Hoje, o sistema é com acionado num teclado.

Em Santa Cruz do Rio Pardo, o primeiro prédio da antiga CTB ficava na travessa Manoel Herculano, cuja construção ainda permanece intacta e será reformada (leia mais abaixo). Era naquele local em que um pequeno e heroico grupo de 12 mulheres tinham nas mãos o controle de toda a malha telefônica da cidade. Toda e qualquer ligação passava pelas mãos das telefonistas.

“NA MESA” — Nair Bueno, na década de 1960, na mesa telefônica em que as chamadas eram completadas



O prédio também possuía duas cabines telefônicas para ligações diretamente no local. Afinal, não era todo mundo que podia se dar ao luxo de ter um telefone em casa. No entanto, nas décadas de 1960 e 1970, as ligações demoravam tanto que há casos de pessoas que resolveram viajar de carro até Bauru do que aguardar uma ligação para aquela cidade.

A chefe do grupo a partir dos anos 1960 era Nair Gomes Bueno. Hoje com 87 anos, ainda se lembra daqueles tempos e garante que tem muita saudade. A reportagem conseguiu reunir mais duas ex-telefonistas, que eram subordinadas a Nair: Maria Elisa Galvão Lamino, 79, e Dinorá Antunes Garcia, 75.

Carteiras de trabalho das três telefonistas, com a anotação da antiga CTB



Na década de 1960, Santa Cruz não possuía mais do que 300 telefones. No entanto, o grupo trabalhava dia e noite porque o serviço não podia parar. Elas se revezavam em três turnos de quatro telefonistas. Na sede da travessa Manoel Herculano, havia até um quarto para descanso.

Dinorá Garcia conta que gostava de trabalhar à noite, já que era solteira. “Eu ficava com pena das casadas, pois havia filhos e marido em casa. Então, trabalhava à noite e nas madrugadas. Perdi muito baile e carnaval”, lembra, rindo.

CARLOS QUEROZ — Ex-prefeito participa de festa com as telefonistas



Maria Elisa Lamino, telefonista durante 20 anos em Santa Cruz, de 1960 a 1980, era uma das casadas. “Havia um concurso para entrar. Quando chegaram os telefones automáticos, eles ofereceram uma transferência para outra cidade, mas a maioria não aceitou e acabou saindo”, contou.

Nair Bueno já estava na empresa quando as amigas Dinorá e Elisa se juntaram ao grupo. Embora fosse a chefe, Nair também se revezava na chamada “mesa”`, um sistema cheio de pinos, fios e botões. O problema maior era quando a ligação era feita para São Paulo ou até mais longe. Nos anos 1960, segundo Nair, uma demora de seis horas era considerada normal. Às vezes, demorava dias.

Quando alguém acionava a manivela em casa, uma pequena chapa se levantava na mesa da telefonista ou uma luz se acendia. O atendimento era tradicional: “Telefonista!” Após o número indicado pelo usuário, um fio daquele número era ligado a outro telefone e a conversa se completava.

Telefonistas no local de traballho, o antigo Posto Telefônico da CTB em Santa Cruz



Segredos guardados

As telefonistas eram as mais informadas sobre tudo o que acontecia na cidade. E não pela curiosidade de ouvir as conversas, pois elas precisavam “entrar” na chamada para ver se a conversa tinha sido concluída. O tempo era marcado por uma espécie de “relógio de ponto” e, em seguida, anotado a lápis numa ficha de papel.

“A gente sabia de tudo”, confirma Dinorá. “Mas a regra era guardar segredo e todos respeitavam”, diz. Eram muitas informações, boas e más, além de muita conversa sigilosa. Afinal, as telefonistas sabiam de todos os conchavos políticos negociados por telefone, briga de casais e até quais eram as amantes dos figurões da cidade.

COMEMORAÇÃO — Nos anos 1960, telefonistas festejam aniversário com familiares, frei José Maria Lorenzetti e José Eduardo Catalano (à esquerda)



Mas tudo é mantido em segredo até hoje. “Eu segui tanto aquela regra que, até agora, não conto nada das fofocas”, brinca Nair Bueno.

Porém, também havia tragédias que surpreendiam até as telefonistas. “A pessoa queria falar com outra para avisar a morte de alguém. E, muitas vezes, este alguém era conhecido ou até parente de algumas telefonistas”, conta Elisa.

Entre tantas, duas tragédias marcaram as telefonistas e praticamente congestionaram a central em Santa Cruz. Em 1963, dez torcedores da Esportiva morreram num pavoroso acidente na rodovia Raposo Tavares. Estavam a caminho de São Caetano, para assistir ao penúltimo jogo do ano em que a Santacruzense foi campeã da Segunda Divisão. Um caminhão FNM bateu de frente com a Kombi e matou os dez torcedores.

Dinorá, Nair e Maria Elisa: saudades de um tempo que não volta mais



Outro fato marcante foi a morte de Carlos Queiroz, em outubro de 1969. “Minha família inteira votava nele. Quando ouvi aquilo num telefonema, foi um enorme sentimento de tristeza”, lembra Dinorá.

Havia outro tipo de tristeza: o desacato, numa época em que isto não era crime. “Tinha gente que xingava pela demora nas ligações. Mas a culpa não era nossa”, lembra Nair. Em contrapartida, muitas empresas ofereciam brindes às telefonistas, como frutas e bebidas, especialmente no Natal.

As telefonistas sabiam a maioria dos números da cidade de cor e salteado. “Quando nos chamavam, as pessoas pediam para ligar na farmácia do Alziro, na prefeitura, na casa do fulano. Era assim”, diz Nair. “O telefone da Santa Casa era 80. O da polícia era 63”, interrompe Dinorá. “O telefone do doutor Clóvis era 32”, lembra Elisa.

Foto ainda mais antiga, de confraternização entre telefonistas



Dinorá, aliás, lembra que conseguiu namorados pelo telefone. “Um deles era de Ourinhos. Gostou muito da minha voz e começamos a conversar durante vários dias. Até que resolvemos nos conhecer”, conta, citando uma época em que não havia internet. “Mas ele era muito feio. Namoramos pouco tempo”, conta, rindo.

Numa outra oportunidade, teve mais sorte, quando namorou um viajante da Maisena que, todos os dias, ia ao Posto Telefônico para ligar para a empresa.

Elas ainda sonham que estão naquela complexa mesa ligando os pinos das chamadas. Na verdade, tudo ficou no passado, pois a profissão de telefonista de sistema público foi extinta. Agora, só mesmo em sonho.

Fchada atual, que mantém as características originais de quando era sede da CTB



Prédio da antiga CTB conserva estilo

antigo e será reformado após venda

Imóvel ainda guarda as

antigas cabines telefônicas

do Posto Telefônico


PASSADO — A antiga cabine telefônica do antigo prédio, que está deteriorado



O antigo prédio do Posto Telefônico de Santa Cruz do Rio Pardo, local em que as telefonistas trabalharam durante décadas, ainda conserva as mesmas características do passado. A impressão é que o imóvel praticamente não foi usado após a transferência, na década de 1970, para o prédio da rua Marechal Bitencourt com suas imponentes torres. Na época já era Telesp, que encampou a antiga CTB. O último morador foi Nelson Abujanra.

A reportagem esteve no antigo prédio na semana passada, que estava sendo vistoriado por proprietários do escritório de contabilidade Mercúrio, que funciona na rua Catarina Umezu e faz fundos com o antigo prédio. A ideia da família Buassali é unir os dois imóveis. O antigo vai servir como depósito de documentos.

Foto do prédio em 1925, do arquivo de Geraldo Vieira Martins Júnior



Claro que será necessário uma reforma considerável, já que há rachaduras por todas parte. Mas as duas cabines que ficavam logo na frente, para o atendimento ao público, ainda conservam até as portas sanfonadas. Nos fundos, há cozinha, banheiro com dois sanitários e um cômodo que parecia um quarto para dormir.

Nas paredes, armários embutidos certamente guardavam documentos das chamadas.

Não há registros sobre a data da construção do prédio comercial, mas o arquivista Geraldo Vieira Martins Júnior possui uma imagem que provavelmente é de 1925. Há sete pessoas na foto, cujos nomes se perderam na história.

* Colaborou Toko Degaspari



  • Publicado na edição impressa de 17/05/2020


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