CULTURA

Pascoalino: 'Corações de gesso'

Pascoalino: 'Corações de gesso'

Publicado em: 08 de junho de 2020 às 15:19
Atualizado em: 29 de março de 2021 às 21:04

Corações de gesso

Pascoalino S. Azords

Da equipe de colaboradores

Para José

Augusto Dias

Economizando no que parecia impossível entre quatro paredes, minha mãe enfeitou a sala com duas imagens sagradas. Como não tinha muito o que tirar dos filhos pequenos, ela também se impôs privações de toda sorte (e jamais reveladas), que afrontavam sua beleza – minha mãe não tinha 30 anos de idade. Tudo somado e com o saldo dividido em suaves prestações mensais, numa tarde de calor infernal chegaram à minha casa um Jesus Cristo e uma Virgem Maria (da cintura pra cima), dentro de molduras ovais fundidas em gesso. Por serem os únicos objetos de decoração da sala, onde mal cabia o sofá, as santidades foram penduradas na melhor parede, de frente para a porta por onde muito de vez em quando chegava uma visita. No fim do ano, era ali, no cantinho, que se armava o presépio e a árvore que eu tirava do ponteiro do guatambu. Antes de receber as bolas e os cordões coloridos, a árvore era toda desfolhada, pintada de prata e nevada de algodão – como devia ser no Natal. Acho que ficava bom.

Na estratégica parede, com presépio ou sem presépio, Jesus e Maria esbanjavam ternura o ano inteiro através dos olhos pintados de azul no gesso. Nem parecia que tinham o peito aberto e o coração exposto ardendo em chamas. No caso do Nazareno, a serenidade era ainda mais extravagante, pois ele também ignorava as chagas deixadas nas mãos pelos cravos com que o pregaram na santa cruz.

Um dia, minha casa ganhou forro de madeira, bicos de luz elétrica e um fogão a gás. Não no mesmo dia e nem com a rapidez com que você acaba de ler, evidentemente. Mais tarde trouxeram da cidade a rede de esgotos, a água encanada e, por fim, o asfalto. Com tanta benfeitoria chegando e os filhos crescendo, a casa já merecia uma reforma, e muros. Para aumentar a sala, a parede dos santos veio abaixo. E com a desativação da cisterna, sobrou espaço para erguer um outro cômodo, onde se pensava que daria para guardar tudo.

Chegando de visita à casa de meus pais, muitos anos depois, eu imobilizava o pêndulo do carrilhão pendurado ao lado da porta do quarto da frente. Assim, o tempo não passava até a minha partida. Depois, eu me sentava na soleira da porta da sala, de onde podia ver a Rua Elizabete passando do lado de fora do portão. Pela minha rua não rodavam mais boiadas a caminho do matadouro, nem as charretes que levavam e traziam as mulheres da zona tilintando engradados de cerveja. Não passavam mais os mascates, o bucheiro, o leiteiro e o padeiro. Nem o marteleiro que seduziu com um quebra-queixo a irmã do cego Horácio, que era bobinha, mas a gente não sabia . Ali não estavam mais os filhos dos pobres jogando figurinha e bolinha de gude, brincando de arquinho, queimada, balança-caixão, cabra-cega, casinha ou troca-troca...

Devagar, e para sempre, a minha rua foi assoreando, como um rio. Enquanto o ventilador tentava baixar a febre das tardes infernais, minha mãe rezava ali ao lado e sem parar. Com dificuldade para caminhar, ela já não se parecia com a virgem gravada em gesso. Os olhos de minha mãe não eram azuis nem secos, como os da santa: eram apertados e careciam de óculos. Se eu lhe perguntasse pelas duas imagens santas, ela não haveria de negar uma resposta ao filho descrente e distante. Mas sempre me faltou coragem para interromper minha mãe naquela sua conversa com Deus.. 



  • Publicada originalmente em 22/02/2009


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