CULTURA

Pascoalino: 'A vida depois da morte'

Pascoalino: 'A vida depois da morte'

Publicado em: 15 de junho de 2020 às 07:10
Atualizado em: 30 de março de 2021 às 13:08

A vida depois da morte

Pascoalino S. Azords

Da equipe de colaboradores

“Colocar-se na pele

do outro é um bom

exercício para aqueles

que querem, mas ainda

são incapazes de amar o próximo como a si mesmo.”

(David Copperfield

— ilusionista)

Esta é uma história um tanto verídica quanto recente. Aconteceu na cidade maravilhosa de São Sebastião do Rio de Janeiro — Rio, para os íntimos. Queria contá-la como se fosse um filme em dois atos. Os leitores bem informados haverão de se lembrar dessa tragédia carioca com muito mais detalhes do que encontrarão aqui nesse relato feito por quem leu a notícia na vertical, aberta como uma fronha na banca de jornal. Não importam os detalhes, o varejinho. Eram duas Marias aposentadas, Vilma Maria e Maria Rita, internadas no Pronto Socorro de São Gonçalo por causa de um derrame cerebral.

O primeiro ato principia com um telefonema do hospital para a filha de Maria Rita, ou Vilma Maria, (o leitor pode escolher, dos dois, o nome com o qual se simpatize mais) lamentando e, ao mesmo tempo, informando o passamento da senhora sua mãe. A assistente social, nesses casos, pede para que o ente querido compareça munido de um documento de identidade do defunto e procure um serviço funerário da sua preferência para preparar o corpo — o mais rápido possível, já que outras pessoas aguardam a sua vez de morrer.

Chorosos, os parentes mais próximos de Maria Rita (minha escolha arbitrária) chegam ao necrotério do Pronto Socorro de São Gonçalo para a liberação do corpo, o que teriam feito com a maior naturalidade não fosse a reação da filha: “Mas essa mulher não é a minha mãe”. A resposta vem pronta, entre paredes brancas, cheia de certeza e autoridade: “Sua mãe não se chama Maria Rita? Filha desnaturada, nem reconhece a própria mãe! Inchaço do derrame”. A filha humilhada enfia no bolso o atestado de óbito reconhecendo sua falta de experiência nesses assuntos mortais.

Velório magro de Maria Rita. Choradeira geral na hora do sepultamento de Maria Rita. Triste volta para a casa de Maria Rita — muita coisa velha para distribuir nos próximos dias do nojo: vestidos, sapatos, pratos e panelas; todos os indícios e o universo de Maria Rita. Se este fosse um filme épico dos anos 1960, a platéia agora sairia para fumar durante o interlúdio de 15 minutos — naquele tempo era impossível ficar sem fumar por mais de duas horas.

O segundo ato principia alguns dias depois, quando a telefonista do mesmo hospital liga para os familiares de Vilma Maria informando que a paciente tivera alta (embora inconsciente), devendo ser levada para casa o mais rápido possível, afinal, outras pessoas aguardam a vez de agonizar naquele nosocômio. Final feliz, igual novela, não tivesse o genro estranhado a sogra sobrevivente. “Decorrência dos medicamentos. Tua sogra não é Vilma Maria? Mais magra por causa da doença”.

Vilma Maria inconsciente durante dois meses, cercada de cuidados e remédios que custaram o olho da cara... Quanta madrugada mal dormida, quanta sopinha sem sal, quanta roupa velha suja e lavada, quanta humilhação no varal... O filme podia se arrastar como uma novela não tivesse Vilma Maria acordado diferente depois de dois meses encubada naquele lar: “Onde estou, quem são vocês?”.

Familiares de Maria Rita devolvem Vilma Maria ao Pronto Socorro de São Gonçalo e o jornal do dia seguinte abre a manchete FAMILIA ENTERRA MÃE ERRADA NO RIO. O filme terminaria assim. As dúvidas que me ocorrem apareceriam escritas, subindo na tela, como aqueles créditos que não acabam mais e que ninguém lê depois de assistir a um longa metragem.

O país inteiro se apressou em esculhambar o hospital e as filhas de Vilma Maria e Maria Rita, que não bateram o pé seguras de que aquela não era a sua mãe: nem Vilma Maria, a morta, tampouco Maria Rita, a defunta sepultada que depois retorna para casa. Mas, o que me espanta, é que nenhum jornalista tenha se colocado no lugar dos genros! O genro “enlutado” que vê, em plena luz do dia, a sogra voltando do além; o genro pendurado na farmácia que só agora, com dois meses de atraso, descobre que estava comprando remédio para uma sogra alheia.

Minha dúvida derradeira: e a Maria sobrevivente, estaria satisfeita com o luto guardado pelos seus parentes? Aprovou o fim dado a todos os seus pertences? 

* Publicado originariamente em 2009



  • Publicada na edição impressa de 07/06/2020


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