CULTURA

Zanata: 'A essência perdida'

Zanata: 'A essência perdida'

Publicado em: 13 de julho de 2020 às 15:18
Atualizado em: 30 de março de 2021 às 04:14

A essência perdida

João Zanata Neto

Havia na velha casa uma recordação que ainda persiste anotada no caderno esquecido. Quando somos crianças, temos o dom de sonhar acordado. São coisas de crianças, sempre dizem os adultos. Elas parecem estar brincando, feito um teatrinho, cada uma com o seu personagem adulto. Se bem que, às vezes, tudo isto é só um treino antes de se tornarem adultos, ou seja, imitam uma coisa que elas não fazem a menor ideia. A imitação que fazem, na realidade, não é por nada. Como poderiam ter objetivos desta ordem. Se soubessem, talvez, não iam querer crescer. Fazem por ser interessante e divertido.

Mas, o que o esquecido caderno traz escrito? As crianças escrevem os seus passeios inesquecíveis, os seus planos futuros ou as suas inocentes impressões de um mundo desconhecido? Talvez, nada disto. Elas ainda não podem entender os significados e as consequências dos acontecimentos. É mais fácil encontrar lá a receita da sopa de pedrinhas com folhas secas ou desenhos do seu mundo infantil. Sol, árvores, papai, mamãe, nuvens, pássaros, flores, casinhas são as impressões mais iniciais deste mundo que ela começa a perceber. Talvez, nada foi escrito e ainda as folhas em branco esperam as frases nunca pensadas.

É uma pena que as crianças não possam se ocupar com estes caprichos da alma. O tempo é de brincar e aprender. O mundo é tátil na infância. É um espírito que desperta em um tempo de descobertas. O mundo lhe causa medo e incompreensão. Elas enfrentam todos os nãos com a indignação dos pequenos. Um ser que age sem propósitos não pode entender o rigor de uma educação do porque não. Quantas perguntas fazem sem obter respostas? Um dia você entenderá, sempre dizem os adultos.

Quais dos garotos realmente desejaram aprender música? Quais das garotas realmente desejaram serem bailarinas? As crianças ouvem as vozes do inconsciente e buscam sem saber o seu lugar no mundo. Mas, os adultos subvertem a ordem natural das vocações. Elas precisam ser livres ao menos na infância. Elas desejam apenas: afeto, saúde, incentivos e informações. Quando eu era criança eu queria ser isto, dizem os adultos. A educação e a sociedade conformam as vontades infantis em propósitos que o sistema espera. São poucas as crianças que seguem as suas tendências.

Nem sempre o que a criança faz é o que ela vai ser. Elas expressam faculdades acessórias que já possuíram. A educação sempre foi abundante. Quantos conhecimentos são passados sem que sejam usados. Sempre foi normal ignorar as potencialidades preponderantes da criança. É como se todo mundo deve-se saber uma enciclopédia apenas para atender um padrão de conhecimento superabundante. É essencial que seja fundamental no início e se torne pragmático em idade avançada. O ciclo de ensino parece ser demasiadamente longo para os dias atuais.

Quando na velha casa, o adulto encontrar o seu caderno esquecido, repleto de desenhos, flores secas entre as folhas e fotos dos seus heróis preferidos ele vai se recordar daqueles tempos de criança. Ele poderá rir ou chorar quando ele se reencontrar como aquela criança livre de espírito que brincou sem propósitos. Ali está a sua essência perdida em um tempo de criança. Talvez, nem todos os adultos estarão felizes. Muitos se sentirão perdidos em um mundo que lhe é muito claro e injusto. A criança com o tempo perde um seu eu a cada dia e só descobre isto muito tarde. 

* João Zanata Neto é escritor santa-cruzense, autor do romance “O Amante das Mulheres Suicidas”.



  • Publicado na edição impressa de 5 de julho de 2020


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