CULTURA

Ellen Manfrim: 'As esquecidas'

Ellen Manfrim: 'As esquecidas'

Publicado em: 06 de outubro de 2020 às 17:24
Atualizado em: 30 de março de 2021 às 13:44

As esquecidas

Ellen Manfrim

Toda profissão tem seus dias de glória e outros de turbulência. A neuropediatria não é diferente: os dias são relativamente comuns, os casos são únicos, mas tem famílias que deixam marcas tão profundas, que acabam modificando a minha maneira de ver as belezas da vida, ou melhor, que me fazem enxergar a verdade nua e crua.

Nessa semana me deparei com uma dessas situações, com um chacoalhão de realidade. Acompanho o menino com autismo há 4 anos, conheço toda a história da sua família. Sua mãe e eu já estamos naquela fase de bater longos papos durante a consulta, coisa que eu adoro. Há dois anos ela engravidou novamente, e no início desse ano fechamos o diagnóstico de autismo do segundo filho. A família é simples, as crianças não têm acesso aos remédios, muito menos às terapias especializadas que são indicadas nesses casos. Pela primeira vez em 4 anos, a entrada da mãe no consultório veio acompanhada de uma nuvem cinzenta e dura de realidade: “Doutora, eu não aguento mais.” Fiquei escutando aquela mãe, as tristes palavras que usava para descrever sua situação, seu choro incontido, e imaginei quanto sofrimento havia na sua vida, e quão pouco foi o apoio que recebeu.

Quando nos deparamos com os diagnósticos dos transtornos do desenvolvimento infantil, traçamos uma luta enorme contra o sistema e contra o tempo para tentar oferecer um tratamento digno e de qualidade. Nessa angústia de cuidar dos pequenos, esquecemos que há uma mulher sofrendo e sem cuidado algum em meio a essa situação. Digo mulher porque, na grande maioria das vezes, a responsabilidade de lutar pelo tratamento dos filhos é atribuída à mãe. São poucos (ouso dizer raros!) os pais que acompanham essa trajetória. Essas mulheres não são escutadas, não são acolhidas e muito menos amparadas. Ninguém se preocupa se estão ansiosas, depressivas, se estão a ponto de se matar. Ninguém oferece ajuda. E pior: a sociedade não lhes dá o direito de reclamar, de sentir cansaço, de chorar. “Vocês foram escolhidas por Deus para cuidar”, eles dizem. E essa frase vira um mantra de resiliência para a vida toda.

A mãe de outro paciente, num final de consulta, me disse: “como eu queria poder reclamar dos mesmos problemas que as mães dos coleguinhas da escola reclamam”. E eu penso: como eu queria que as mães de crianças atípicas fossem ouvidas, fossem cuidadas, fossem apoiadas! Mas, infelizmente, nossa sociedade se esquece de que precisamos nos colocar no lugar do outro, especialmente quando a dor do outro é maior que a nossa.



  • Publicado na edição impressa de 27 de setembro de 2020


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