A professora na lousa escolar: uma cena rotineira da vida de Maria Camilo desde 1977
Publicado em: 26 de março de 2022 às 06:46
Atualizado em: 26 de março de 2022 às 06:56
Sérgio Fleury Moraes
O nome dela é Maria do Carmo Camilo Nogueira, mas podem chamá-la de “Professora Maluquinha”. Afinal, o título que ela conquistou em dois anos seguidos — 1997 e 1998 — marcaram a professora como uma das mais geniais do Brasil. Em setembro, quando completa 75 anos, ela será obrigada a se aposentar da rede estadual de ensino. No entanto, nem pensa em parar. “Vou fazer projetos voluntários na educação”, diz, com a mesma paixão com que começou a lecionar há quase 45 anos.
Maria Camilo é professora da escola “Sinharinha Camarinha”, mas já deu aulas na zona rural do município e nas escolas “Maria José Rios” e “Genésio Boamorte”. Ela começou sua trajetória como professora em 1977, o mesmo ano em que surgiu o DEBATE. “Foi também quando meu filho nasceu. Ele tinha 20 dias quando eu entrei pela primeira vez numa sala de aula como professora”, contou.
Antes, ela era uma simples dona de casa e ajudava a mãe — hoje com 97 anos — e vários de seus oito irmãos, além de trabalhar numa pequena fábrica de vassouras da família. Um dia, combinou com a irmã Terezinha que iriam cursar uma faculdade. “Ela disse que iria fazer História e eu fui fazer magistério. Depois, cursei História em Jacarezinho e Pedagogia em Piraju. E virei professora”, lembrou.
Não foi um trabalho fácil. Maria Camilo lecionava no início alternando o magistério entre escolas da cidade e algumas da zona rural. “Eram escolas de tábua e as estradas não eram boas”, lembra. O marido a incentivou a tirar carta de motorista. No entanto, em épocas de chuva a professora invariavelmente encalhava o carro em lamaçais.
Quando isto acontecia, era preciso recorrer a tratores de sitiantes ou, então, às caminhonetes da Companhia Luz e Força, empresa em que o marido trabalhava, que faziam serviços nas propriedades. Nas escolas rurais, Maria Camilo chegou a dar aulas para alunos de quatro séries diferentes numa mesma sala. Era preciso se desdobrar para levar conhecimento às crianças.
Como professora, Maria Camilo lecionou na Água das Pedras, Cebolão, Bairro da Onça e Figueirinha de São Roque. Precisava acordar às 5h para chegar às 7h na escola. “Ainda hoje é preciso acordar muito cedo, pois as aulas na Sinharinha Camarinha começam às 7h e a escola é em período integral”, diz.
Os anos se passaram, as escolas rurais foram desativadas e Maria Camilo se firmou não apenas como educadora respeitada, mas também como ativista em favor de conquistas na educação. Até hoje, ela marca os nomes dos deputados que votam contra benefícios para os professores. Para fazer campanha contra, é claro. Neste ano, por exemplo, a lista de Camilo está aumentando.
Nos anos 1990, a professora de Santa Cruz do Rio Pardo virou uma celebridade nacional. Foi quando ela conquistou, por dois anos seguidos, o título de “Professora Maluquinha”, uma homenagem concedida por várias editoras e entidades ligadas à educação com o apoio do escritor e desenhista Ziraldo. O cartunista escreveu um livro com o mesmo título, que em 2010 virou um filme estrelado por Paola Oliveira, Chico Anísio e grande elenco.
Em 1997, ela dividiu o prêmio “Professora Maluquinha” com a amiga Lúcia Almeida, mas voltou a conquistar o título no ano seguinte. A estatueta, na época um dos maiores prêmios da educação, foi entregue em São Paulo numa solenidade especial com a presença de autoridades e educadores.
Maria Camilo foi homenageada por conta de um projeto inusitado que desenvolveu em escolas de Santa Cruz do Rio Pardo. “Era uma alfabetização através de panfletos publicitários. Havia poucos na cidade, mas eu buscava outros em Ourinhos”, lembrou. O método era curioso: o aluno recortava os panfletos, comparava com produtos que mãe usava em casa e aprendia a ler com os folhetos.
“De certa forma, eu ainda faço isto, pois hoje, com este absurdo da progressão continuada, tem aluno que sai da escola sem saber ler e escrever”, contou. Este tipo de método adotado há anos na educação brasileira evita a repetência nos ciclos básico e fundamental, mas tem recebido críticas de alguns profissionais. “No ano passado, eu presenciei pelo menos dois alunos formados com sérias dificuldades para ler”, disse. “Isto é fruto do PSDB e ocorre desde 1985. É preciso mudar o partido do governo”, dispara.
Maria do Carmo Camilo faz esta observação com a autoridade de quem tem mais de quatro décadas de experiência em sala de aula. Além disso, participou da mudança do giz para o pincel diretamente na lousa e ainda viu a chegada da tecnologia computadorizada. Hoje, diz que não tem problemas com o manuseio do computador, onde faz a chamada dos alunos e verifica os conteúdos das aulas. “É fácil. Quando tenho algum problema, recorro a uma criança”, diz.
A mudança que a professora não gostou aconteceu com os alunos. Segundo ela, antigamente havia mais respeito dentro da sala de aula. “Hoje, eu ainda consigo controlar meus alunos, mas tem professora que sofre muito”, afirma.
Para Maria Camilo, o comportamento hostil de alguns estudantes é provocado pela ausência dos pais, que nem sempre são os culpados. “A mãe trabalha fora e o pai só chega de noite — e às vezes brigando com a mulher. A criança fica sem referência de família”, diz.
Camilo perdeu o marido há 32 anos, quando ele sofreu uma queda de um poste de energia elétrica. Era funcionário da atual CPFL e ficou 40 dias internado no hospital Beneficência Portuguesa, cujo provedor era o dono da companhia energética, o empresário Antônio Ermírio de Moraes. “Ele nos visitou no quarto e pagou um hotel para eu ficar enquanto meu marido estava na UTI”, conta. No entanto, o homem não resistiu aos ferimentos.
O médico Euryclides Zerbini também procurou Maria no hospital logo que o marido morreu. Considerado o maior especialista na época em transplante cardíaco, Zerbini foi perguntar se ela autorizava a retirada do coração do marido. “Eu não deixei porque meu marido não havia se manifestado a respeito disso em vida”, explicou.
Inacreditavelmente, o luto pelo marido foi uma das quatro licenças que Maria Camilo tirou em quase 45 anos de magistério. As outras foram pelas mortes do pai e mais dois irmãos.
Em setembro, quando vai completar 75 anos, Maria do Carmo Camilo Nogueira será obrigada a se aposentar. “Na verdade, vão me expulsar”, brinca. É que a legislação determina aposentadoria compulsória para professores que atingem a idade limite.
Mas engana quem pensa que a professora vai parar de ensinar. “Tenho planos para desenvolver um projeto voluntário de educação. Já falei com dirigentes e acho que vou conseguir até uma classe para dar aulas de reforço. Quero fazer com que os alunos consigam realmente ler e escrever”, explicou.
Sem dúvida, a reconhecida mestra de Santa Cruz do Rio Pardo vai continuar fazendo jus ao sagrado título de “professora maluquinha”.
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