Célio Soret (à esquerda) à frente de um Scandia, avião que a Vasp mantinha em sua frota nos anos 1950 e 1960; santa-cruzense escapou de acidentes na última hora
Publicado em: 09 de dezembro de 2023 às 21:08
Atualizado em: 10 de dezembro de 2023 às 19:28
Sérgio Fleury Moraes
Célio Soret foi um dos poucos santa-cruzenses que participaram do período de glamour da aviação comercial brasileira. Ele foi radio-operador da Vasp (Viação Aérea São Paulo), uma antiga empresa de aviação que pertenceu ao Governo de São Paulo. Quando a profissão foi extinta, em razão das mudanças tecnológicas nos aviões, Soret virou comissário de bordo até se aposentar, nos anos 1980.
A Vasp foi fundada em 1933 e, dois anos depois, foi estatizada pelo governo paulista. Expandiu suas linhas aéreas pelo interior paulista e, anos depois, por vários estados brasileiros. Nos anos 1950 e 1960, a Vasp mantinha linhas aéreas em Santa Cruz do Rio Pardo, quando a cidade possuía um aeroporto no bairro da Estação. Os antigos DC-3 pousavam na pista de terra com destino a Presidente Prudente ou São Paulo.
A história de Célio Soret é realmente incrível. Sua vida profissional foi marcada por muita sorte – ou verdadeiros milagres. O primeiro foi em 1949, quando ele viajava para trabalhar em São Paulo. Naquela época, ele ainda namorava com a mulher com quem se casaria – Zoé de Paula Assis Sore (a ausência do “t” foi um erro do cartório no registro de casamento). O casal teria quatro filhos – Norton, Denise, Eliane e Alexandre -, todos entusiastas da profissão do pai.
Naquele ano de 1949 o jovem Célio Soret iria iniciar sua trajetória nos ares e viajava de trem quase todas as semanas entre Santa Cruz do Rio Pardo e São Paulo. Era uma rotina pegar a composição na estação de Santa Cruz, trocar o trem no final do ramal em Bernardino de Campos e seguir para a capital.
Numa das viagens, Célio seguia confortavelmente numa das poltronas e havia outros amigos nos vagões. Um pouco à frente, um deles convidou Soret para se sentar ao lado, pois a poltrona parecia ser mais confortável. O santa-cruzense, que estava quase cochilando, declinou. Alguns minutos depois, a tragédia.
Na altura de Mairinque, o trem descarrilhou e houve um engavetamento dos vagões. Naquele canto em que um amigo o convidou para sentar, todos morreram. Milagrosamente, Célio Soret sofreu apenas escoriações leves e ainda ajudou a resgatar vítimas e empilhar corpos.
Outro sobrevivente da tragédia foi o professor santa-cruzense Luciano Batista, que também estava no trem. Em 2004, numa entrevista ao DEBATE, Soret contou que, após o resgate das vítimas, o professor Luciano percebeu que uma garrafa de aguardente, que estava em sua mala, não se quebrou. “Nós estávamos tão nervosos que resolvemos tomar uns goles”, contou.
Os anos se passam e Célio Soret já é um respeitado radio-operador da Vasp. Amava a profissão e a tragédia do trem ficou no passado. Na manhã do dia 26 de novembro de 1962, o santa-cruzense estava a postos no aeroporto de Congonhas como radioperador plantonista. Era uma espécie de “reserva” para qualquer imprevisto nas tribulações dos voos.
E este imprevisto aconteceu. O radio-operador titular Edson Miranda da Silva, responsável pelo voo da aeronave SAAB Scandia, que faria a ponte-aérea São Paulo-Rio de Janeiro, não apareceu. O chefe da equipe logo avisou Célio Soret de que ele faria o voo. O santa-cruzense vestiu o uniforme, pegou todos os manuais e caminhou pela pista em direção ao avião.
A poucos metros da aeronave, ele percebeu alguém correndo pela pista em sua direção e acenando desesperadamente. Era Edson Miranda, o radio-operador titular do voo. Com medo de ser demitido pelo atraso, Miranda implorou a Soret para que o deixasse cumprir o voo. O santa-cruzense teve pena do colega e voltou para o plantão, entregando a missão para o titular.
O avião decolou às 8h40 com destino ao aeroporto Santos Dumont, no Rio de Janeiro. Pouco depois das 9h, o Scandia bateu num Cessna 310 bimotor e espatifou-se num pântano na região de Paraibuna/SP. Segundo apurou a aeronáutica, as duas aeronaves colidiram frontalmente porque o piloto do Cessna ignorou os avisos para mudar o teto para 8.500 pés. O acidente matou 26 pessoas, entre eles o radio-operador que quase foi substituído por Célio Soret.
Demorou anos para Soret esquecer a perda de amigos da Vasp naquela tragédia. Mas ele escaparia da morte mais uma vez, vinte anos depois.
Em 1982, a profissão de radio-operador já estava extinta, em razão das novas tecnologias usadas na aviação. Para não prejudicar a aposentadoria do santa-cruzense, a Vasp readequou Soret na empresa aérea como comissário de bordo. Ele estava perto de se aposentar.
Um dos aviões da Vasp era o Boeing 727-200 prefixo PP-SRK, com capacidade para quase 200 passageiros. A aeronave era uma “conhecida” do santa-cruzense, que fez muitos voos a bordo do avião. Aliás, em janeiro de 1981, Soret levou a família para uma viagem até Belém, capital do Pará, no mesmo avião que marcaria para sempre a vida do comissário de bordo.
Em 7 de junho de 1982, Soret estava escalado no voo noturno para Fortaleza, partindo do aeroporto de Congonhas, com escala no Rio de Janeiro. Ele chegou a se apresentar no aeroporto de São Paulo horas antes do voo, mas o médico plantonista da Vasp percebeu que Célio não estava bem. Ele suava e tinha o rosto vermelho.
O médico o examinou e diagnosticou uma crise de hipertensão. Célio Soret, então, recebeu ordens para se retirar do voo. Ele tentou explicar ao médico que era um mal-estar passageiro e que logo estaria bem. Não adiantou. O santa-cruzense foi afastado minutos antes do voo e substituído pela comissária Miriam Cocato Lima, de apenas 22 anos — três dos quais na empresa aérea.
O voo 168 da Vasp levava celebridades entre os passageiros, como Ernesto Lundgreen, um dos donos das Casas Pernambucanas, o empresário Edson Queiroz (dono de um império de comunicações, incluindo a TV Verdes Mares, afiliada da Rede Globo), e um grupo de empresários do setor têxtil que retornava da 27ª Fenit em São Paulo.
O Boeing decolou às 22h53 de São Paulo, fez a escala no Rio de Janeiro quarenta minutos depois e seguiu para Fortaleza. Às 2h25 da madrugada o comandante Fernando Antônio Vieira de Paiva iniciou os procedimentos para o pouso. Ele já avistava as luzes da cidade, mas ignorou a Serra da Aratanha, no município de Pacatuba. A caixa-preta da aeronave registrou um aviso do copiloto Carlos Roberto Duarte ao comandante: “Dá para ver que tem um monte aí na frente? Uns morrotes aí, não?”
Segundos depois, o impacto. Às 2h45, o avião bateu na Serra da Aratanha, matando todos os 137 ocupantes. Alguns corpos sequer foram identificados devido à violência da explosão. Fragmentos de corpos foram enterrados no local do acidente.
Enquanto isso, Célio Soret, já medicado, voltou ao aeroporto de Congonhas para se encontrar com dois colegas, no final da madrugada. Ele ainda não sabia da tragédia. Foi recebido com abraços emocionados. “Soret, você está vivo!”, gritavam os amigos. É que, na primeira lista de mortos divulgada pela Vasp, estava o nome do comissário Célio Soret.
Foi, então, que o santa-cruzense desabou. Em choque, precisou ser medicado novamente. Em 2004, ele contou ao jornal que sua primeira reação foi telefonar para Santa Cruz do Rio Pardo para avisar os parentes. Durante dois dias, ele enfrentou uma maratona de entrevistas, uma delas ao programa “Fantástico”, da Rede Globo.
Nos dias seguintes, Célio entrou em depressão. Ele se sentia culpado pela morte da comissária Miriam Cocato Lima, que o substituiu no fatídico voo. Soret demorou para se recuperar e em 1983 se aposentou.
A tragédia de 1982 foi considerado o maior acidente aéreo do Brasil durante 24 anos, sendo superado em 2006 pelo desastre do voo Gol 1907, que se chocou com um jato Embraer Legacy, matando 154 pessoas.
“Meu pai teve um Deus muito grande ao lado dele durante os mais de 30 anos em que voou”, avalia a filha Eliane.
Mesmo aposentado, a aviação não deixou Soret. Durante algum tempo, ele praticou aeromodelismo com o filho Norton. Até que um dia, desistiu. “Meu negócio é avião grande”, brincava. No entanto, sempre defendia que o avião é o meio de transporte mais seguro que existe.
A cada início de um novo ano, Soret seguia um ritual à risca: agradecer a Deus pela sorte que o acompanhou e lamentar pelos colegas que perderam a vida em seu lugar. Para a família, sempre foi milagre.
Ele morreu em junho de 2004, de problemas cardíacos. Tinha 74 anos.
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