CULTURA

Beto Magnani: 'A camisa de força'

Publicado em: 06 de maio de 2020 às 22:40
Atualizado em: 29 de março de 2021 às 22:16

HISTÓRIAS DO MAGÚ

A camisa de força

Beto Magnani

Da Equipe de Colaboradores

— A camisa de força tem duas utilidades: segurar os espasmos violentos dos loucos e ajudar os mágicos nos seus fantásticos números em que escapam dela em segundos para saírem das mais diversas situações de perigo. Os mágicos são perfeitos.

— Concordo. Já dos loucos já não podemos falar o mesmo...

— Esses escapam da camisa infiltrados em cargos importantes.

— Essa é boa.

— Têm medo de conspirações internacionais, acreditam em planícies absurdas, seguem o Messias e seus quatro patetas, ignoram seus limites e duvidam da inteligência alheia.

— Que louco isso que você tá falando! Depois falam da gente.

— Pois é. E parece que o moleque da cobertura do Guarujá escapou. Abandonou o Messias.

— Qual moleque do Guarujá?

— O mágico.

Eram dois homens falando muito alto bem embaixo da minha janela. Não resisti, ouvi. A conversa foi interrompida pelo carro de som que passou anunciando: “A Funerária Nascimento comunica o falecimento da Senhora Clotilde Samuray, sogra do Genésio, gerente da Caixa Econômica Federal. A Família consternada agradece os sentimentos e avisa que não haverá velório por se tratar de Coronavirus. A missa será no sétimo dia após o término da quarentena. Mas o Genésio informa que poderá receber cumprimentos de pêsames a partir desta segunda-feira em sua própria mesa na agência da Caixa.”

—- Achei que já tivesse visto de tudo, mas essa superou. No caso não vi, mas ouvi.

— É a sogra do Seu Genésio. Coitada. Ele é um moço tão bom.

— Sim, mas quem morreu foi a sogra, não ele.

— Mas a sogra era dele. Segunda-feira vou lá.

— Mas voltando... o espelho quebrou assim que a moça viu a própria imagem.

— Era feia?

— Não. Linda.

— E por que o espelho quebrou?

— Não suportou tamanha beleza.

— Quebrou de repente?

— Não. Foi escorregando pela parede e até espatifar no chão.

— E ela?

— Ela chorou.

— Que lindo!

— Mágico!

— Muito doido.

— Doidaço! Sucesso total no condomínio! Bem doido! Salve o chefe soberano!

— Poxa, muito maluco mesmo!

— Tá tá tá moleque!

— E ela teve sete anos de azar?

— Quem?

— A linda que chorou.

— Ah sim. Total! Sete anos de azar. Prende o ladrão!

— Prende! Tá tá tá!

— O chefe da policia pelo telefone manda avisar!

— Salve o Soberano!

— Vamo agora lá no Genésio!? Dar os pêsames!

— O banco é só na segunda.

— Ele deve estar na casa do cara do carro de som.

— Deve. Vamos.

— Doidão o cara do som!

— Total! Doidão!

Eles foram. Não levantei em nenhum momento para olhar. Só ouvi. Também achei que já tinha ouvido de tudo até o diálogo que acabara de entrar pela janela, acompanhando a brisa do final da tarde. Continuei no sofá. Voltei ao noticiário da televisão. Sem comentários.

(Magú)