Publicado em: 18 de abril de 2018 às 11:07
Atualizado em: 22 de março de 2021 às 00:26
Fogo de encontro
Geraldo Machado
“É preciso deixar atrás
de nós um mundo um
pouco mais limpo,
um pouco mais belo
do que era, mesmo que
esse mundo seja apenas
um quintal ou uma cozinha”.
(Marguerite Yourcenar
— “Memórias de Adriano”)
Um dia, distraído e alheio, caí na arapuca de olhar a folhinha que um negociante me deu no fim do ano. Dessas antigas, de se destacar do bloco, dia a dia, com o nome de um santo e, atrás, um preceito. Fiz minhas contas nos dedos, recontei, e vi que estava ficando velho. As contas não fechavam, por mais que eu usasse a subtração. Vi que passava dos oitenta, contadas só as décadas. Embora o índice de vida média tivesse aumentado muito, o caso era sério. Que fazer a essa altura da vida? Mas, foi então que lembrei dos icebergs. A parte que emerge é muito pequena e, a que se esconde, imersa, muito maior. É esta que afunda Titanics... Eu não via o que eu já tinha afundado, escondido. Vi que não muito me sobrava e quase soçobrei.
Foi então (repito-o), que vi o quanto eu tinha de me cuidar, em tempo. Foi quando me lembrei da Marguerite de Yourcenar, numa epígrafe com que bordei um artigo escrito há anos. Olhei para a minha cozinha, para o meu quintal e vi minha casa. Resolvi redecorá-la, dar menor tamanho aos cômodos, usando as paredes para encolhê-la. Aqueci o piso com tapetes, pus quadros nas paredes, dei um tom conseqüente com a minha atualidade, as minhas referências. Eu precisava me diminuir sem me esconder e me achar para não me perder. Fui à minha estante e, nesta idade, resolvi mandar encadernar meus livros de capas maltratadas, castigadas pelos anos. Não posso deixar para os meus netos esse espólio de brochuras. Não tenho livros descartáveis, best-sellers. Não desejo dar vista à minha estante, mas vida aos meus livros já de folhas amarelecidas pelo tempo.
Não cheguei à cozinha nem ao quintal da Marguerite — são pequenos. Mudei a cara da minha casa, não para se parecer comigo — mas eu me parecer com ela. Renovado, rodeado dos meus haveres (que não são alfaias). Ter, haver, sentir num pequeno mundo de referências pessoais e familiares sem precisar da rua e do bar. Enfeitar meu mundo, que a vida quer diminuir me diminuindo também.
Luz, muita luz, pediu Goethe para morrer. Cor, muita cor — eu peço para viver. Toda casa deve ter vida ou morremos com ela — nela.
Se eu fosse mais moço, como fui, estaria — ao meu gosto — na minha terra, plantando, olhando a natureza — com a família — como já foi. Não quero fazer do meu sítio um desterro, um mosteiro, uma tebáida. A natureza empolga, domina, aliena — não é referência. A casa, sim, pode não ter sol, mas tem calor, aconchego. Sei cuidar para não fazer dela um casulo para me hibernar na metamorfose das borboletas. Nunca tive vocação das lagartas nem das taturanas.
O caboclo derrubador de mata, quando queimava uma roçada e não queria que o fogo alastrasse nos vizinhos, aproveitava o vento à feição para pôr fogo de encontro. Este caminhava em sentido contrário às labaredas, deixando atrás de si, cinzas e mato queimado, limitando a área do fogo forte que vinha lambendo, incontrolável e soberano. Eu estou fazendo assim com a minha vida, para sustentá-la. Ponho fogo de encontro e mostro que não vou preparar um cenário mórbido de quaresma. Se possível, um permanente Natal, para esquecer a Semana Santa sadomasoquista, roxa, cheirando vela e parafina. Sair pelas ruas, de manhã, dizer bom-dia às pessoas, ir ao correio, andar a pé. Mas, ao voltar para casa, sentir-me em casa. Ler, ouvir boa música, escrever, aproveitar os momentos — e “deixar atrás de nós um mundo um pouco mais limpo”... “A eternidade é um mero hoje, é o fruto imediato e lúcido das coisas infinitas” — disse Jorge Luis Borges.
Não quero que o meu leitor — moço (se houver) — pense que, nesta fase da existência, eu me transformei num homem de prendas domésticas — do lar — “dolarizado”. Não. Vi, com Emerson, que “Está no próprio homem — e não na natureza — toda beleza e valor que ele vê”.
Não podemos perder as referências. O passado é referência. Os nossos objetos pessoais, nossos quadros, retratos, livros — a música — os amigos, tudo arranja a nossa vida. Ser velho é acumular sabedoria (é uma frase feita, lugar comum). “Cada idade tem a sua juventude” — disse Bastos Tigre. Basta diminuir este mundo ao tamanho de uma cozinha ou um quintal — e enfeitá-los. Deixá-los limpo, nem que seja para agradar a Marguerite. Deixar lá fora a natureza. (“Se no menor detalhe se pudesse perturbar a ordem da Natureza — quem desejaria aceitar o dom da vida?”) Fecho o parêntesis e a boca — que não é sem tempo.
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