O cumprimento carinhoso do amigo Pedro César Sampaio mostra que o médico Abelardo Pinheiro Guimarães foi admirado em Santa Cruz do Rio Pardo, cidade que governou logo após o período de Tonico Lista. Sua última carta foi endereçada ao jornal, postada no dia de sua morte
Publicado em: 16 de julho de 2022 às 03:39
Atualizado em: 24 de julho de 2022 às 22:22
Sérgio Fleury Moraes
Quem foi Abelardo Pinheiro Guimarães? Para os mais jovens, pode ser apenas o nome de um imponente edifício comercial na avenida Tiradentes ou de uma Unidade Básica de Saúde (UBS) no bairro da Estação. Para quem estudou a história da cidade ou mesmo conheceu o médico carioca que adotou Santa Cruz do Rio Pardo como sua terra, Abelardo foi um democrata, um homem extremamente bondoso que cuidava dos pobres sem cobrar pelas consultas. Em seus últimos anos de vida, combateu a ditadura militar.
Abelardo nasceu no século 19, no bairro do Botafogo, no Rio de Janeiro. Foi no dia 10 de janeiro de 1897 que veio ao mundo o filho de uma família importante na política carioca. Segundo o advogado Luiz Antonio Sampaio Gouveia, cujo avô — Pedro César Sampaio — foi muito amigo de Abelardo, o médico carioca veio de uma descendência ilustre no Rio de Janeiro. “A família dele formou alguns estadistas do Império e da Velha República”, contou.
Órfão de pai aos três anos, o pequeno Abelardo foi morar com a mãe na casa do avô paterno, Joaquim Tibiriçá Pinheiro Guimarães, que na época era o assessor do Barão do Rio Branco, ministro das Relações Exteriores durante a gestão de quatro presidentes do Brasil — Rodrigues Alves (1902-1906), Afonso Pena (1906-1909), Nilo Peçanha (1909-1910) e Hermes da Fonseca (1910-1914).
Provavelmente pela tradição familiar, a política e o idealismo sempre fizeram parte da vida de Abelardo Pinheiro Guimarães. O Carnaval também, como legítimo “carioca da gema”.
Seu sonho, porém, era se tornar médico. Para custear os estudos, trabalhou como revisor num grande jornal do Rio de Janeiro e iniciou o curso de Medicina numa instituição que mais tarde deu origem ao Colégio Salesiano Dom Bosco.
Com o diploma nas mãos, Abelardo ingressou na Rockfeller Foundation, uma organização dos Estados Unidos que ajudava o Brasil a combater a malária. Neste trabalho incansável, o médico cruzou o País, morou no Rio Grande do Sul e depois em Minas Gerais. Quando passou por Jacarezinho, no Paraná, conheceu sua primeira mulher — e se apaixonou.
Era Dagmar Ferreira, filha do coronel José Eugênio Ferreira e irmã do advogado Omar Ferreira e do fazendeiro João Ferreira. Mais tarde, os dois irmãos se tornariam políticos expressivos em Santa Cruz do Rio Pardo. Omar foi duas vezes candidato a prefeito e ligado ao grupo da UDN.
Abelardo e Dagmar se casaram em 1921 e vieram para Santa Cruz do Rio Pardo no ano seguinte. E foi justamente em 1922 que a política da cidade se tornou mais violenta, com o assassinato do coronel Antônio Evangelista da Silva, o poderoso “Tonico Lista”, em julho daquele ano. Depois do crime, a prefeitura teve uma troca constante de prefeitos, com mandatos de alguns meses a, no máximo, dois anos.
Mas Abelardo ainda não pensava na política, pois era recém-chegado a Santa Cruz do Rio Pardo. Passou a exercer a medicina ainda numa região conhecida como o sertão paulista. Usava cavalo para alcançar as propriedades rurais e povoados para socorrer os doentes.
Desgostoso com os rumos do antigo Partido Republicano Paulista, Abelardo e um grupo de jovens dissidentes do PRP fundaram em 1926 o Partido Democrático de Santa Cruz do Rio Pardo. Dois anos depois, já era vereador.
Um dos expoentes do PD era um dos grandes homens públicos do País, o santa-cruzense Antonio Carlos de Abreu Sodré, filho do segundo prefeito — na verdade, o cargo era de intendente — de Santa Cruz do Rio Pardo, o fazendeiro Francisco de Paula Abreu Sodré.
A família Sodré era extremamente influente e participativa. Em 1922, um dos irmãos de Antônio Carlos, o médico sanitarista Luiz Costa de Abreu Sodré, escreveu um tratado sobre as condições sanitárias de Santa Cruz do Rio Pardo. Foi Luiz provavelmente quem tirou as únicas fotos de Rita Emboava, a “santa” popular da cidade que sofreu muitos anos com a lepra e morreu em outubro de 1931.
Quando o Partido Democrático se uniu novamente ao antigo PRP, Abelardo Pinheiro Guimarães ingressou na Aliança Liberal e apoiou Getúlio Vargas na revolução de 1930. Pouco depois, foi um dos fundadores do Partido Constitucionalista, criado por Antonio Carlos Abreu Sodré. O PC, na verdade, anos mais tarde deu origem anos à UDN.
Abelardo seguia Antonio Carlos, inclusive na mudança de partido. Ele não aceitou os rumos da Aliança Liberal, afastou-se e depois participou da Revolução Constitucionalista de 1932.
No final de 1930, Abelardo Pinheiro Guimarães foi nomeado prefeito de Santa Cruz do Rio Pardo. Tomou posse no início de 1931 e iniciou uma administração preocupada com a situação sanitária de Santa Cruz e o planejamento urbano. Esbarrou, contudo, na falta de recursos da prefeitura.
Como médico, foi Abelardo quem mandou queimar a casa de Ritinha Emboava após a morte da “santa” em 1931. Na época, a hanseníase ainda era uma doença considerada incurável e extremamente contagiosa. O fogo, segundo acreditava-se na época, era a única maneira de evitar a proliferação da bactéria causadora da lepra.
Como prefeito, Abelardo Pinheiro Guimarães deu os primeiros passos para planejar a pavimentação asfáltica de Santa Cruz e a implantação de uma rede coletora de esgoto. Estas obras, porém, só viriam a se concretizar alguns anos mais tarde, no governo de Leônidas Camarinha.
O médico deixou a prefeitura em 1935. No ano seguinte, voltou a ser eleito vereador.
Em seguida, Abelardo Pinheiro Guimarães tentou se eleger deputado, numa época em que a votação não era direta, mas por indicação de distritos. O médico chegou a ser indicado por 15 distritos, mas perdeu a vaga para o advogado Dante Delmanto, que conseguiu duas indicações a mais.
Dissidente do Partido Constitucionalista, Abelardo fundou em Santa Cruz o PMI (Partido Municipalista Independente). Com o fim da ditadura Vargas e a redemocratização do País, Abelardo fundou o diretório da UDN no município, que presidiu por vários anos.
Em 1954, Abelardo aliou-se a Ademar de Barros quando o ex-governador rompeu com o grupo do deputado Leônidas Camarinha em Santa Cruz do Rio Pardo. A história da briga teve a ver com o desejo de Camarinha em se tornar presidente da Assembleia Legislativa de São Paulo.
O economista Miguel Moyses Abeche Neto, que viveu muitos anos em Santa Cruz do Rio Pardo e conhece profundamente a história política do município, lembra que havia uma promessa de Ademar para apoiar a candidatura de Camarinha a presidente da Assembleia. No entanto, o ex-governador não cumpriu o combinado e o deputado santa-cruzense ficou furioso.
O rompimento aconteceu no Palácio dos Campos Elíseos, que na época era a residência oficial do governador. Leônidas Camarinha foi conversar com Ademar de Barros e descobriu que não teria o apoio dele para disputar a presidência da Assembleia. Irritado, Camarinha deixou o local e um grupo de repórteres de rádio o aguardavam no portão de saída. Estava, inclusive, um grupo da rádio Difusora Santa Cruz, que pertencia ao deputado. A pergunta foi inevitável: “E aí, deputado, o senhor vai ser presidente da Assembleia Legislativa?”
Tentando manter a calma, Camarinha respondeu: “Não. Na verdade, o Ademar faz chover dinheiro no quintal do Paulo Lauro e até ouro no quintal do Carvalho Sobrinho”. Intrigados, os jornalistas insistiram: “Mas e no quintal do senhor?”
“No meu, o Ademar abre o guarda-chuva”. A declaração ganhou a imprensa, magoou Ademar e o rompimento foi inevitável. Em 1954, pela primeira vez em alguns anos o deputado Camarinha fez campanha em Santa Cruz para outro candidato a governador, Prestes Maia.
No entanto, alguns políticos ligados a Camarinha não aceitaram o rompimento e apoiaram Ademar, cuja campanha no município ficou a cargo de Abelardo Pinheiro Guimarães. Foi o caso de Idarilho Gonçalves e Antônio Consalter, respetivamente líderes dos distritos de Espírito Santo do Turvo e Clarínea. Nestes dois locais, Ademar foi o mais votado.
O médico Abelardo se empenhou tanto na campanha de Ademar que ele próprio se lançou candidato a deputado federal pelo PSP do ex-governador. Claro que sua força não chegava nem perto do poderio político de Camarinha. Além disso, o médico estava “espremido” entre dois grandes grupos santa-cruzenses, a UDN e Leônidas Camarinha. Pinheiro Guimarães recebeu 1.235 votos e obteve uma suplência como deputado. Ademar, seu candidato a governador, foi o terceiro colocado em Santa Cruz. No entanto, Camarinha também foi derrotado, já que Prestes Maia foi o segundo mais votado em Santa Cruz. O vencedor na cidade foi Jânio Quadros.
Pouco antes, Abelardo sofreu a perda da mulher Dagmar Ferreira Pinheiro Guimarães, com quem teve os filhos Maria do Carmo, Márcio, Marcílio Guimarães — candidato a prefeito em 1972 — e Moacir. Em 1955, ele se casou com Maria Marcelina Pinto Guimarães, com quem teve os filhos Abelardo, Heloísa Maria, Silvia Maria e Cecília Maria.
Ainda era militante político quando a democracia sofreu um duro golpe em 1964, com a implantação da ditadura militar. Desde cedo, Abelardo se posicionou a favor da democracia e contra os militares. Nos anos 1970, foi um dos primeiros filiados ao recém-criado MDB de Santa Cruz do Rio Pardo, o único partido de oposição permitido pelo regime militar.
A idade avançada não retirou seu idealismo. Em 1976, aceitou ser candidato a vereador na chapa do MDB, que tinha dois candidatos a prefeito – Cláudio Catalano e Antônio Ribeiro Filho, o popular “Bulota”. Abelardo sabia que não tinha nenhuma chance de conquistar uma cadeira, mas acreditava que o MDB deveria ter o máximo de candidatos possível para somar votos nas duas sublegendas. Assim, ele também inscreveu como candidata a vereadora sua própria mulher, Maria Marcelina Pinto Guimarães.
O MDB foi derrotado pelo candidato da Arena, Aniceto Gonçalves. No entanto, um grupo de jovens da época chegou a fazer uma propaganda bem humorada em favor de “Bulota”, seu vice - o ferreiro Luiz Brondi — e o candidato a vereador Abelardo Pinheiro Guimarães. Quem lembra é o economista Miguel Moyses Abeche Neto: “Um cartaz trazia um slogan: vote na experiência — quase 300 anos a serviço de Santa Cruz do Rio Pardo. Era uma certa referência à soma da idade dos candidatos.
Abelardo, na verdade, tinha 79 anos, embora aparentasse ser mais velho. Mesmo assim, alguns populares apelidaram o trio de “Chapa Matusalém”, uma brincadeira que muitos consideraram um desrespeito. “Na verdade, eram figuras maravilhosas. O presbiteriano Luiz Brondi era quase um santo, o doutor Abelardo um grande médico e o fabuloso Bulota, um personagem alegre e humilde”, afirmou Abeche.
Nos últimos anos de sua vida, Abelardo Pinheiro Guimarães morou num velho casarão na rua Conselheiro Antonio Prado, nas proximidades do cinema. Era pobre e continuou não cobrando consultas ou atendimentos de famílias carentes. Nunca se importou em fazer fortuna. Morreu no dia 2 de dezembro de 1977 e o acontecimento foi manchete do DEBATE número 8, que estava iniciando sua jornada.
Última carta do médico, endereçada ao
jornal, foi entregue durante seu velório
Abelardo Pinheiro Guimarães sempre foi uma figura admirada em Santa Cruz do Rio Pardo. Todos o conheciam e alguns eram amigos muito próximos. É o caso do também médico e ex-prefeito Pedro César Sampaio. “Meu avô e o doutor Abelardo eram muito amigos. Ele era o médico da família dele”, conta o advogado Luiz Antonio Sampaio Gouveia. “O Abelardo foi uma pessoa fascinante”, disse.
Por isso, quando a morte de Abelardo Guimarães foi anunciada no dia 2 de dezembro de 1977, a cidade se entristeceu. O corpo do médico foi velado na Capela da Casa Paroquial no dia seguinte e, no período da tarde, levado para as últimas homenagens na Câmara Municipal. Houve discursos que enalteceram a trajetória do médico e político, como pronunciamentos de José Eduardo Catalano, do prefeito Aniceto Gonçalves e do vereador Jorge Araújo – que na época era do MDB.
No cemitério, mais homenagens antes do sepultamento. Discursaram o professor Bernardino de Mello Lacerda, Ismael Machado e o ferreiro Luiz Brondi. Eles destacaram que Abelardo sempre tinha uma palavra de incentivo para o pobre desemparado e que jamais se importou com as pompas da riqueza.
A morte do médico foi publicada como manchete numa das primeiras edições do DEBATE. Ainda na primeira página, o jornal publicou um texto do professor José Magalli Junqueira, que lembrou o surgimento de “nuvens escuras” sobre a cidade no dia da morte de Abelardo Pinheiro Guimarães. “Acredito piamente que Santa Cruz do Rio Pardo perdeu um de seus grandes e ilustres homens. Doutor Abelardo foi um desses que não se esmorecem. Madeira de lei entre tantos carunchos da vida. Muito idealismo, ardor e espírito de luta”, escreveu Magalli.
O médico Abelardo Guimarães morreu na mesma semana em que o líder de seu partido, o MDB, deputado Ulysses Guimarães, havia sido absolvido pelo Supremo Tribunal Federal por unanimidade. Ele foi acusado de atacar o regime militar num programa de televisão, na companhia do deputado Alencar Furtado e outros emedebistas. Todos criticaram o AI-5, o alto custo de vida e o arrocho salarial. Furtado foi além e denunciou o “desaparecimento” de líderes da oposição sabidamente mortos pela ditadura.
Alencar foi cassado no dia seguinte pelo presidente Ernesto Geisel. O general também determinou a abertura de processo para cassar Ulysses Guimarães com base na Lei de Segurança Nacional. O deputado recorreu ao STF e, num julgamento histórico, foi absolvido por unanimidade.
A curiosidade é que, enquanto o corpo de Abelardo Pinheiro Guimarães estava sendo velado, no dia 3 de dezembro de 1977, uma carta foi entregue pelos Correios à redação do DEBATE. O selo indicava a postagem no dia anterior, 2 de dezembro. O remetente era o próprio médico, que em seu último texto enalteceu a democracia e a vitória de Ulysses Guimarães no STF.
Tinha 80 anos, mas ainda carregava o idealismo e defendia a necessidade de reconquista da democracia no Brasil. Não viveu para ver o fim da famigerada ditadura militar.
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