CULTURA

Geraldo Machado: 'Dona Neguinha'

Geraldo Machado: 'Dona Neguinha'

Publicado em: 19 de abril de 2019 às 23:21
Atualizado em: 30 de março de 2021 às 04:34

Dona Neguinha

(Texto republicado em homenagem à ‘Dona Neguinha’, que morreu no dia 1º aos 103 anos)

Geraldo Machado *

“São Gonçalo aqui

estamo, pra bejá o teu

artá, e de fasto vortaremo,

pras costas não te virá.”

Tereza Costa da Cunha, Dona Neguinha, “contadora de histórias verídicas” de São Pedro do Turvo. Escreveu a História dessa cidade e me presenteou com um livro. Mais tarde recebi as “CRÔNICAS DIVERSAS”, datilografadas por ela e ajuntadas num caderno com as folhas presas por uma espiral. É neste caderno que eu vou me inspirar e, mesmo, copiar para o leitor, um ou outro trecho das suas “crônicas”. Falei hoje cedo com ela e fiquei com a data do seu aniversário confirmada: 16 de Setembro — vai fazer 97 anos. Mora na sua casa e recebe muitas visitas, nunca está só, a cidade lhe quer (e lhe deve muito). Pena que ela sofreu um acidente cirúrgico por imperícia médica e, de um tempo pra cá, só enxerga com uma vista. Não lê mais, não escreve mais — conta o que sua memória prodigiosa lhe permite. Não vê, mas lembra de todas as famílias da cidade, contados um por um os ascendentes e descendentes com nomes e apelidos — por isso que ela mesma, a Tereza Costa da Cunha é a Dona Neguinha.

É religiosa praticante e aglutinadora de senhoras para toda atividade filantrópica ou social. Ela nasceu para liderar e, além do pendor para a tarefa, tem caráter burilado pela idade e pelo comportamento que a faz tão respeitada. Contei no “índice” e nos dedos as suas “Crônicas e “Mensagens”: somam 40 e, 15, as primeiras e as segundas que têm o subtítulo de “religiosas”. Mas, sem fazer favor nenhum, sem preconceitos, tudo é literatura, e da melhor por não ser rebuscada, uma, e fanática, a outra. Numa das páginas do caderno está lá: (CURIOSIDADES) e, logo embaixo, esta advertência: (É nos momentos de insônia que vem à nossa mente as famílias antigas de São Pedro do Turvo, com seus numerosos filhos e por serem todos sãopedrenses, achei interessante mencioná-los). Vou “mencionar” só a primeira família no rol de 25 ao todo. FERNANDO CÉSAR JÚNIOR e CONCEIÇÃO; FILHOS: Ari, Alceu, Alarico, Alberico, Amauri e Roberval, Nair, Maria, Dirce, Dinorah, Iracema, Geni e Neide (13). Por aqui o leitor poderá avaliar a memória da veneranda Dona Neguinha e a sua saudosa presença entre nós, que a amamos como se fôssemos sãopedrenses da beira do Turvo.

Se permanecermos numa média de 10 filhos por família (25), chegaremos a um numero aproximado a 250! É muita coisa para a cabeça do leitor que só faz conta no computador e não sofre de insônia, mesmo nestas noites frias sãopedrenses e que enxergava melhor que a gentil mulher de São Pedro do Turvo e, enxergava tudo em volta do turvo e turbulento. Enquanto posso controlar a minha tendência para a abundância sentimental, seja nos gestos, seja na escrita, vou pular para a página 11 do caderno da Dona Neguinha, essa senhora sensata. O título é: “AS 8 CASAS DA RUA SÃO PEDRO”. Vamos ver o que ela conta na sua crônica:

“Margeando o Ribeirão São Pedro é que teve início a nossa população. Ali foram construídas as primeiras moradias e as casas de comércio. Instalaram-se armazéns de secos e molhados, lojas de tecidos, padaria, ferreiros e fogueteiros etc. Já em 1920 até 1925 mais ou menos, a Rua São Pedro foi perdendo a sua vida com o deslocamento das pessoas para outros locais, devido a abertura de diversas ruas. O comércio se expandiu mais no centro da cidade; somente as casas de madeira permaneciam naquela rua, mas ela continua importante pois tem um valor histórico.” Conta D. Neguinha que em 1922 ela residia com a sua avó, do outro lado do rio, onde hoje há uma serraria. Sua família foi sorteada para fazer a festa de São João. Seria necessário preparar, em grande quantidade, biscoitos, broas, batata doce e amendoim torrado, não faltando os célebres rojões de vara, que subiam muito alto, dava um grande estouro e voltava á terra ainda fumegando.

As duas priminhas Neguinha e Negrinha se encarregaram de pedir adjutório para a compra dos foguetes. Percorriam portanto as 8 casas da rua São Pedro pedindo um tostão a cada família. Colocando a tiracolo um pequeno embornal de “arranca toco”, saíram bem cedinho a percorrer a vizinhança.

1ª CASA: Perto do matadouro, morava TOBIAS e JESUINA, um casal de escravos, com seus filhos.

— Bom dia minha gente, que cheirinho bom é esse?

— É a ZUINA que está tostando couro de porco para a mistura do almoço.

— E o seu Tobias o que faz?

— Coxeando paviu prá botá nas candeias, aproveitando a gordura que resta das frituras.

— E a filharada onde está?

— João, Manoel e Miguel estão na roça quebrando mio; Maria, Benedita e Cristina foram pro corgo lavar roupa; Sebastiana e Luzia foram à Barra buscar aquele barro amarelinho para rebocar o fogão e o forno a lenha... e o primeiro tostãozinho caiu no nosso embornal.

2ª CASA: Logo na rua encontramos o Seu ZACARIAS, também ex-escravo, viúvo, morando com o seu filho JOAQUIM. Ele empurrava com tremendo esforço, um par de rodas de carro, já eixadas e eram levadas ao ferreiro para argolar. Atendendo o nosso pedido Seu Zacarias procurou no bolso da ceroula e outra moedinha tilintou.

3ª CASA: “O que o senhor está fazendo aí nesse jacá, seu JOÃO THOMÉ?” “Socando cinza pra fazer barreleiro que nos dará a dicoada, ou lixívia. A PERCILIANA ganhou uma barrigada de boi e precisava de dicoada pra fazer o tal sabão de cinza, pois é tirada da queima de palha do feijão que eu e a véia batemo ontem com vara de marmelo. Encontraram nas estroncas o nosso desejado adjutório, que também caiu no embornal”.

4ª CASA: Na esquina seguinte, a casa de Dona HONÓRIA. Seu AURELIANO socava no pilão, amendoim torrado e farinha de milho para o costumeiro PÉ de MOLEQUE. Dona HONÓRIA logo nos disse: em vez do tostão vocês vão comer ainda quentinho, arroz doce com rapadura. Agradecemos e seguimos nossa viagem.

5ª CASA: A casa estava fechada, mas o monjolinho socava e água fazia barulho. Também lá a moedinha não caiu, mas Dona ONORFA, cortando um pedaço de toicinho defumado, esfregou-o no fundo do tacho que estava quente e logo se levantou torrado e salgadinho, um bem crocante BIJU, que saímos comendo. E de parede e meia com essa casa, morava a Dona GITRUDE, também viúva e ex-escrava morava ali com o filho Bento. Então ouvimos um SHOU... SHOU... SHOU. Era a boa velhinha que espantava a galinhada dos vizinhos, pois quando ela pronunciava o seu muito alto QUIT... QUIT... voavam todas pra lá. E o seu terreiro encheu-se de galinhas, patos, marrecos, angolas. Ao ver-nos chegando ela gritou: “Não entrem meninas, pois os gansos são bravos e investem em crianças”. Saímos correndo.

6ª CASA: Atravessamos a rua e lá em cima de um barranco estava a casinha amarela de Dona LEOPOLDINA e JÚLIO VÉIO.

— E os filhos onde estão? “O CHICO, o ANTONIO e o JOAQUIM foram arrancar mandioca; e a MARIA, a DURVALINA e a JULIA estão por ai campeando serráia, almerão ou até mesmo caruru, pra se fazer uma misturinha”. O casal de velhos ganhava a vida fazendo benzeduras de lombriga assustada ou desconfiada, cortando cobreiro bravo e até o medo de crianças que demoravam andar. Ali também mais um barulhinho no nosso embornal.

7ª CASA: No meio de um milharal se escondia a casinha pobre de SINHANA VENÂNCIO e o seu OLÍMPIO. Entramos, receando os cachorros que latiam sem parar e já numa peneira de taquara, escorriam as gostosas pamonhas prontas para que o LAZO fosse vendê-las a 500 réis a dúzia — “Vão escolhendo meninas as de sal estão amarradas com palhas, e as de doce, com barbante. E ali também foi só o que ganhamos.

8ª CASA: Terminava a rua com a casa da família PINHEIRO. Logo na entrada do mangueirão, estava a família toda reunida, observando alguma coisa. Curiosas, também nos aproximamos e para surpresa nossa era a jumenta que acabava de criar um esperto jumentinho, também conhecido por jegue. Nada de beleza tinha o animalzinho: Pernas tortas e orelhas muito compridas e a mãe com todo amor o lambia, procurando proteger o filho dos espectadores curiosos. Dona PINHEIRA, como era chamada a dona da casa, tirava leite das vacas, que logo seria vendido pela vizinhança. Quando ela nos viu foi falando: “Entrem e vão lá na prateleira, peguem as canecas de ferrosgate para apararem um leite bem escumadinho. Dispensando até o almoço que a Vovó já nos teria preparado, íamos voltando para casa, quando ouvimos um cantarolar estrambótico, lá do pasto da chácara vizinha. Era Dona RITA MOURA com os seus cabelos espandongados e jeito esquisito, e que tentava pendurar na cerca de arame farpado, alguns jacás de taquara branca, forrados com capim, para servirem de ninhos às galinhas botadeiras. Não fomos lá porque a velhinha além de não bater bem da cuca, detestava crianças. Voltamos felizes para casa, pensando nos estouros dos rojões de vara, e na fogueira da NOITE de SÃO JOÃO.” São Pedro do Turvo, 02 de dezembro de 2001.

(Tereza Costa da Cunha)

Meu caro leitor: creio que dei conta do meu recado. Venho agora pedir um adjutório (1 real cada um), para eu comprar tinta para a minha REMINGTON 25 e papel CHAMEGUINHO, e dar um presente de aniversário para a DONA NEGUINHA: vista e pernas para, com 97 anos (somados com os meus — 16 de dezembro — dá uma bela conta... 190 anos! E, o melhor, estamos ambos vivos e pedindo um VIVA! Viva a vida! Viva á vida! Haja foguetes e foguetórios, mas, quero foguetes de vara, cruzando os céus de Chavantes a São Pedro do Turvo, aonde vamos percorrer as “8 CASAS” – do TOBIAS e JESUINA (1) a dos PINHEIROS e da jumenta lambendo a cria e a Dona RITA MOURA de cabelos espandogados.

“São Gonçalo, tão dizeno, que você é traiçoero, passa as moças pra trás pras véia casa primero”.

* In memoriam



  • Publicado originariamente em 2012


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