CULTURA

Geraldo Machado: 'Era uma vez um coronel chamado Tonico Lista'

Geraldo Machado: 'Era uma vez um coronel chamado Tonico Lista'

Publicado em: 02 de fevereiro de 2019 às 18:38
Atualizado em: 29 de março de 2021 às 08:25

Era uma vez um coronel

chamado Tonico Lista

Geraldo Machado *

“Bem aventurados os

que cultivam com os seus

bois os campos paternos”

— Horácio”

Tive a feliz oportunidade de assistir à reunião cultural do lançamento do livro “Coronel Tonico Lista”, escrito pelo saudoso amigo José Ricardo Rios. Publicado postumamente traz a lembrança de fatos que afloram à mente da gente. É, a história, uma teia de aranha, armada de ciladas na sua tessitura, difícil de desfiar quem nela se emaranha.

No panorama histórico, a distância se enxerga melhor. Eu, ao ler o “Coronel”, de cabo a rabo, enrabichado com a história, cheguei àquelas distâncias onde fui menino. Caboclinho do Sertão do Paranapanema, que aprendeu de outiva nos sertões borralheiros do fogão de taipa barreado com tabatinga. Olhos arregalados à luz da lamparina de querosene Jacaré, de chama e fumaça, entre um cochilo caído da pestana e o mofino encargo de sair da tripeça e correr ao paiol de milho (da palha roxa), campear a palha escolhida para o cigarro de fumo de corda do pai, dos tios e do venerando avô, seus maiores. Esse menino de canela fina, sofria sem resmungos a interrupção dessas histórias no vai-e-vem da palha, da caneca d’água e da brasa equilibrada na colher, do “macro-lenha” pro cigarro do Tio Quincas.

“Por estender co’a fama a curta vida”, disse Camões. Válido de um épico para o outro — o de Zé Ricardo Rios.

Na leitura do “Coronel”, familiarizei-me com várias personagens. O coronel Quincas Negrão (Joaquim Fernandes de Oliveira Negrão) foi meu avô materno. Ele e a vovó Nana Sinharinha, (Anna Braga de Oliveira Negrão) vieram a cavalo, de Jaboticabal, acompanhando a mudança. Veio, também o Bilota (Gabriel F. de Oliveira Negrão). Abriu a Fazenda do Ibiruçu, onde fica hoje a Usina São Luís. Lá, ele tinha engenho de cana. Meu bisavô, o Negrão Velho, veio de Cravinhos. Do meu pai, meu avô Possidônio Gonçalves Machado, trouxe o irmão, Francisco Narciso Gonçalves (Machado), pai de D. Guilhermina Brandina da Conceição. Vieram de Sant’Ana do Sapucai (Silvianópolis, hoje). Sant’Ana-Brotas — São Pedro do Turvo — Santa Cruz do Rio Pardo, rota do êxodo (ou diáspora) do tronco Paula Lima com o português Machado, fustigado pelo seu anticlericalismo.

Estigma, ferrete, marca infamante no medieval mineiro, do obscurantismo que saltou do confessionário para as “pastorais-da-terra”, numa guinada de 180 graus, para uma fé mais ventilada — do incenso para a clorofila.

Meu avô Possidônio nasceu em 1848, faleceu em 1935 e eu tinha quinze anos verdoengos. Meu pai nasceu em 1890, faleceu em 1974. Há muita prosa nessa saga de mineiros. Vovô trabalhou de agregado nas terras (matas) do coronel Batista Botelho, seu compadre, casado com a sua sobrinha Guilhermina (a tia Mimina do professor Wilson Gonçalves, meu primo). O Tio Osório Narciso (Osório Antônio Gonçalves), pai do professor, foi casado com a prima, Tia Mariquinha, irmão do meu pai. Vê-se, leitor, que estamos diante dum enredo, dum urdume que nem tarrafa: enrosca peixes miúdos e graúdos, lisos e de escamas. Quero deixar claro para os mal informados, que o termo “agregado”, não tem a conotação vulgar. Não é o servo-da-gleba, medieval, feudal. Vem de fonte latina, de agregar (aggregare) — juntar, unir. Vem dele a grei — sociedade, família, partido e, na verdade, (e também), rebanho de gado miúdo. Pela lei e pela grei, velha norma de estado.

Meu avô e um negro chamado Benedito Mulato — fugido dos barões do café para o sertão do Paranapanema — eram vizinhos de gleba. Até que um dia, um capitão-do-mato posto no seu rastro, fez com que o negro fugisse, deixando a mulher branca, a Geracina, para alcançar em Salto Grande, um batelão que o levasse para o Mato Grosso. Esses batelões levavam sal para o oeste e traziam couros de boi para cá. Índios eram os encarregados de manejar a zinga (varejão) e o remo. Quando o capitão-do-mato chegou à fazenda e o coronel Botelho disse que o preto, avisado, fugira, ato-contínuo, fez uma proposta e acabou vendendo o Benedito por quinhentos mil réis. Feito o negócio, o coronel incumbiu o Chico Narciso (não o velho sogro, mas o cunhado moço) e o Juca Veado, (no sentido genérico do termo: rápido, sacudido de que o Juca fazia jus, e não o sentido “avacalhado” de hoje) de alcançar o fujão antes de partir o batelão. Chico Narciso, na mula Estrela e o Juca na sua besta estradeira, chegaram em tempo a Salto Grande. Tomaram uma canoa rápida e alcançaram o batelão pesado que descia, à deriva, o Panema. “Vem, Benedito, para canoa, que o coronel te comprou”. Aconteceu que o negro, pisou na beirada da canoa e caiu n’água... Lá vão os quinhentos mil réis do coronel”, gritou com humor o Chico Narciso (tio do professor Wilson Gonçalves).

Voltou o Benedito Mulato para o coronel e amo, e para a Geracina — seu amor. Trabalharam anos e, tempos depois, antes de vender as fazendas (a Mombuca e a Bela Vista) para o coronel Henrique da Cunha Bueno, reservou trinta alqueires de mata — a cada um — para o meu avô Possidônio, seu compadre, e o negro Benedito Mulato que, a esse tempo já estava forro. Com serviços avulsos, pagou os quinhentos mil réis do “resgate” e da sua liberdade. Meu avô contava que assinou como testemunha na carta-de-alforria do Benedito, na cidade de Lençóis — a comarca, à época.

O Benedito Mulato, analfabeto, agüentou pouco nas terras dele. Vendeu para o Coronel Ferraz, homem de Jaú, pôs uma venda no bairro São José. Logo perdeu tudo, morreu com nada e a viúva Geracina, terminou os seus dias de “sem-terra”, no asilo da cidade. Para não dizer que ficou com as mão vazias, morreu com o papo (bócio) que lhe ornava o pescoço. Bizarra bijuteria, já que as metáforas nascem na Granja do Torto. Foi o que lhe coube neste latifúndio.

Meu avô, mandou, filho por filho — perfilados — aprender o beabá, com o mestre-escola, sergipano, Constâncio Carlos, (pai do Benedito Carlos e da Antônia, mãe dos Britos, sobreviventes do clã). Ficavam, de favor, com serviços para cuidar, a troco da escola. Meu pai morava com o mestre, pajem do Benedito Carlos. Tio Quincas, na casa do João Vasconcelos, dono de Cartório. Tio Tonico, na chácara do doutor Ribeiro, um agrimensor.

Sou um dos sobreviventes dos “Possidônios”. Tenho o que me coube de muitos inventários e partilhas por falecimentos — reforma agrária justa e fatal. Meu filho mais velho, engenheiro civil, cuida do que nos coube no latifúndio “reprodutivo”. É da quarta-geração — não dinastia, vale dizer, levando em conta que moramos no vale do Paranapanema, não às margens do Nilo como os felás. Fica consignado — no ato - para os que jejunos de história e empachados de ideologia (que, para mim, é a idéia e o ideal fossilizados), não confundam coronel com faraó — Germano com gênero humano.

Meu leitor anônimo e complacente: o velho tem lembranças próprias, todas óbvias. Quando lê (ainda e inobstante), acumula aulas da leitura dos mestres na sua cabotagem cultural. A memória, a tradição, são espartilho que modelam o estilo. Com a idade, pisando acalcanhado, da árvore para a caverna, do glacial para o “El Ninõ” tropical, junta-se ao homem, no homem, uma aluvião de desbarrancos, de erosão moral e telúrica, ética e temporal que fazem dele um delta de limo que se confunde com o saber. Ninguém sabe: espia, cisma como o Juca Mulato do Menotti. Esse delta, se plantado, dá. É fértil, é fecundo. Fica espaço para a família do José Ricardo, pela colaboração com a cultura, divulgando o que guardava no baú-de-ossos do Pedro Nava..

* In Memoriam



  • Publicado em 2004


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