CULTURA

Geraldo Machado: 'O defeito tá na cara'

Geraldo Machado: 'O defeito tá na cara'

Publicado em: 06 de maio de 2020 às 23:22
Atualizado em: 27 de março de 2021 às 21:50

O defeito tá na cara

Geraldo Machado *

Com este calor de sauna não é fácil dormir a noite. Neste ano, atípico é aquele que se queixa do verão. Quem mudou não foi o estio, nem o Natal, fomos nós. Embora tardiamente, podemos responder à clássica questão de Machado de Assis num conto de Natal: passou o Natal e o calor continua. E como refrigério, vamos à poesia: No “O Assalto”, diz Afonso Schmidt: “Sulpício dizia que ela cheirava a mormaço, a flores do caminho…”. Giovanni Papine pensava assim: “O verão é obsceno de sol, brutal de poeira, gordo de provisões”. O caboclo reclama que o sol está de arrebentar mamona.

Numa dessas manhãs de sono mal dormido, pulei da cama cedo, tomei um banho frio (da caixa), e saí pelas ruas desta cidade feia pelo descuido da transição do poder, de viúva no inventário. Andei a deriva, respirando a fotossíntese das sibipirunas cheirando a mormaço. Quando dei por mim, pelas minhas pernas, estava no asilo. Abri o portão e entrei. Que diferença! A cidade que recebe impostos e o asilo que vive de esmolas! Vale a pena, ou melhor, o conforto de visitá-lo.

Ali a velhice se dissipa. O jardim pequeno, mas bem cuidado. Sombra das árvores para os velhinhos desassombrados dos verões das carpas de café.

Uns de pé (pernas para que te quero), outros tirando carta nas cadeiras de roda. Limpos e vestidos. Para eles não há o “fome zero”; lá tudo zerou: a família, o amigo, o patrão…

Tudo lá é limpo. Não há papéis nem folhas no gramado bem aparado. Os bancos não têm nada a ver com os poleiros dos rapazes da Praça dos Estudantes da minha cidade, este “Atol de Mururoa Sorocabano” que bem poderia ser adotada como cidade irmã daquela região do Pacífico onde a França fazia as suas experiências atômicas. Lá, no asilo, há ordem, há limpeza — há administração! Lá não existem chavões como “recuperando o tempo perdido”, “avançando no tempo”. Lá estão todos parados no tempo, mas limpos, com a dignidade que a velhice pressupõe. Lá não existe herança maldita!

Andei por ali, absorto, até achar um banco sob uma jabuticabeira com frutas, verdes ainda, no tronco. Senti-me em casa, asilado, liberto da rua, dos entulhos e dos esbulhos. Nisso em que eu estava, longe nas origens, ali respirando a pulmonadas, num boca-a-boca com a Mãe Natureza, sentindo o seu hálito e seu alento, se aproximou do meu banco, movendo as rodas da cadeira com as mãos, um moço de 60 anos, mineiro de Muriaé. Pés enfaixados, pernas travadas por uma queda que lhe quebrou a bacia, um pano para limpar o nariz e um “papagaio” pendurado na cadeira como kit. Jacy, é como se chama.

Veio menino para as fazendas de São Paulo e Paraná. Carpiu muito café e deu-me uma aula de como escolher um cabo de sapuva ou guaiuvira para a enxada. A cunha de cabreúva ou canelinha. O marfim para o cabo da foice e do machado. Jacy foi carreiro em Abatiá, no Paraná. Na boiada de carro havia dois bois de estimação: o “Elegante” e o “Pinta-sirva”. Seu pai contava que o fazendeiro dono da terra onde ele nasceu não “justava” camarada que usava calças sem cinta e calçava chinelos. “Tava na cara”, disse, como o cigano que “passou uma manta” num caboclo vendendo um cavalo cego e disse, obviamente, que o defeito estava na cara…

Não vi a hora passar, no asilo, com o Jacy. Vi que até lá há história, e história é vida. Quem não a tem, não vive, respira. Mas isso, até sapo! Quando o velho é profundo, enxadeiro, carreiro (da enxada que dá calo, do carro que canta) ou escritor “destas mal traçadas linhas”; quando fala (aquele) ou escreve (este), estão legando as suas confissões dois velhos, nem reis nem réus confessos, mas asilados na história: “Elegante” ou “Pinta-sirva”.

* In memoriam

* Publicado originariamente em 2012



  • Publicado na edição impressa de 26/04/2020


SANTA CRUZ DO RIO PARDO

Previsão do tempo para: Sexta

Períodos nublados
21ºC máx
11ºC min

Durante todo o dia Céu limpo

COMPRA

R$ 5,40

VENDA

R$ 5,41

MÁXIMO

R$ 5,41

MÍNIMO

R$ 5,39

COMPRA

R$ 5,44

VENDA

R$ 5,61

MÁXIMO

R$ 5,45

MÍNIMO

R$ 5,43

COMPRA

R$ 6,36

VENDA

R$ 6,37

MÁXIMO

R$ 6,37

MÍNIMO

R$ 6,35
voltar ao topo

Voltar ao topo