CULTURA

“Homem de saia”, a primeira travesti da história de Santa Cruz do Rio Pardo

“Homem de saia”,  a primeira travesti da história de Santa Cruz do Rio Pardo

Publicado em: 27 de dezembro de 2020 às 19:21
Atualizado em: 28 de março de 2021 às 04:24

Personagem viveu no início do século 20 e foi ligado à mulher do coronel Tonico Lista

Sérgio Fleury Moraes

Da Reportagem Local

Seu nome era Luiz Antônio Pereira, mas todos o conheciam como “Luiz de Saia”. Nasceu em Brotas em 1863 e foi escravo. Não se sabe como ele veio parar em Santa Cruz do Rio Pardo, onde passou a servir a família do coronel João Baptista Botelho, um dos líderes políticos da cidade no final do século XIX e início do século XX. Em poucos anos, ficou conhecido como “Luiz de Saia” porque usava a vestimenta feminina e provavelmente foi o primeiro travesti de Santa Cruz.

Quando Batista Botelho se casou com Guilhermina Brandina da Conceição, a vida de Luiz se transformou. Guilhermina, na verdade, era uma mulher bonita, inteligente e tinha opinião própria, segundo o historiador Celso Prado. De acordo com o costume da época, ela foi “dada” em casamento ao coronel pela própria família.

“A Guilhermina teve a personalidade forjada numa família de parcos recursos. O pai era comerciante e, de acordo com relatos da época, a família era considerada classe média e costumava se dobrar politicamente aos coronéis”, explicou Celso. Neste caso, os pais ofereceram a menina ao coronel.

Mármore do jazigo tinha inscrições biográficas sobre "Luiz de Saia"



Porém, devido à beleza, juventude e certa independência de Guilhermina, o coronel Batista Botelho designou o escravo Luiz Antônio Pereira para “vigiar” os passos da mulher. Isto teria começado a partir de 1880. “Mas ficou evidente que Luiz e sua proprietária criaram vínculos de cumplicidade e amizade”, disse Prado.

Tanto que, a partir do dia 13 de maio de 1888, quando a princesa Isabel assinou a lei áurea que libertou todos os escravos do Brasil, Luiz continuou a prestar serviços à Guilhermina.

Guilhermina morreu em 1929 e morte foi anunciada em jornais da capital (abaixo)



Em 1902, a tragédia se abateu sobre a família de Batista Botelho, o político mais importante de Santa Cruz do Rio Pardo naqueles tempos. No dia 2 de julho daquele ano, de maneira inexplicável, o coronel atenta contra a própria vida, disparando um tiro de revólver no ouvido direito. Tinha apenas 45 anos.

Vários médicos tentaram mantê-lo vivo, mesmo praticamente em coma. Mas a saúde de Botelho piorou e ele morreu no final do dia 8 de julho. Os sinos da Igreja Matriz anunciaram a morte entoando dobrados fúnebres.

Luiz continuou como fiel empregado de Guilhermina. Porém, manteve também o costume de usar saia ao invés de calça, algo incomum para um homem naquela época.

Celso Prado investigou o personagem e apurou que provavelmente ele se tornou eunuco (homem castrado) desde a infância como escravo, quando começou a revelar características femininas. Era, enfim, assumidamente homossexual, fato considerado tabu para a época. “Era muito comum no plantel de escravos os meninos franzinos e afeminados serem preparados para cuidar de mulheres ou crianças”, disse. Com este perfil, Luiz foi designado para cuidar da menina mulher do coronel. “Ele foi preparado para prendas domésticas”, contou.

No entanto, segundo Celso Prado, “Luiz de Saia” também era fruto de uma época violenta. “Apesar dos arroubos de feminilidade e o hábito de usar saias, por debaixo da vestimenta ele portava armas e fogo e algumas facas. E era reconhecidamente bom de briga”, contou o historiador. Por isso mesmo, Luiz era respeitado e aceito pela sociedade.

Antônio Evangelista da Silva, o coronel “Tonico Lista”, foi o herdeiro político de Batista Botelho. Aliás, herdou não apenas o poder como também a mulher. Dois anos depois da morte do coronel Batista Botelho, Tonico se casou com a viúva Guilhermina. E “Luiz de Saia” continuou servindo sua antiga proprietária.

Em 1921, quando a oposição a Tonico Lista recrudesceu, o coronel já planejava se retirar de Santa Cruz. Em fevereiro de 1922, ele comprou uma mansão em São Paulo e levou a esposa e filhos para a capital. Ainda era o prefeito de Santa Cruz, mas vivia viajando de trem, já que era constantemente ameaçado por uma oposição cada vez mais forte.

O servo “Luiz de Saia”, desta vez, não seguiu a patroa. Permaneceu em Santa Cruz, mas, deprimido, virou um personagem da noite.

Exatos vinte anos depois da morte de Batista Botelho, uma nova tragédia aflige a vida de Guilhermina, que tinha 57 anos. O coronel Tonico Lista foi assassinado a tiros. Ele foi alvejado por um soldado da força pública na venda de Mizael de Souza Santos, nas imediações da antiga Câmara Municipal. Era o dia 8 de julho de 1922.

Mortalmente ferido, Tonico foi encaminhado de trem para São Paulo, já que a medicina de Santa Cruz do Rio Pardo não tinha muitos recursos. Morreu na madrugada do dia seguinte, ainda na composição ferroviária.

Foi sepultado em São Paulo, onde a mulher já morava, no Cemitério do Araçá. “Luiz de Saia” continuou em Santa Cruz, enquanto Guilhermina ainda se casaria uma terceira vez, com um comerciante de joias de São Paulo chamado Victor Ressi de Almeida.

Sepultura do personagem histórico foi destruída, mas há fotos, inclusive das inscrições em mármore



Entretanto, Guilhermina nunca esqueceu Tonico Lista, o grande amor de sua vida. É provável que ela não tinha um relacionamento sólido com o comerciante e vivia viajando para Santa Cruz do Rio Pardo. Já não era rica, pois ainda tinha apenas três imóveis na cidade.

“Luiz de Saia” morreu em 1927, aos 64 anos. Sua única parente era uma irmã que morava em Santa Cruz. Ele foi sepultado no cemitério da cidade, em jazigo perpétuo. Segundo Celso Prado, certamente Guilhermina deve ter financiado o túmulo, mesmo tendo uma inscrição em nome da irmã de Luiz Antônio Pereira. A mulher que foi casada com dois dos mais poderosos homens políticos de Santa Cruz — e que Luiz acompanhou praticamente a vida toda — morreu dois anos depois.

Cadastro da prefeitura traz o nome do falecido, "Luiz de Saia", sem mais informações



O túmulo de “Luiz de Saia”, porém, foi destruído pela política adotada na atual gestão, de retomar jazigos abandonados, mesmo perpétuos, independentemente de sua importância histórica. No cadastro do cemitério, consta que os restos de “Luiz de Saia” — anotado com este nome mesmo — foi transferido para o ossuário municipal.

Ficaram as curiosas lembranças do personagem que usava saias nos tempos dos coronéis e as fotos do velho túmulo, que trazia a seguinte inscrição: “Aqui jaz Luiz Antônio Pereira, vulgo Luiz de Saia, nascido em Brotas em 1863 e falecido a 8 de julho de 1927. Foi captivo e sempre um homem de bem. Saudades de sua irmã”.



  • Publicado na edição impressa de 20 de dezembro de 2020


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