CULTURA

Irmãos de sangue e fé

Irmãos de sangue e fé

Publicado em: 08 de junho de 2018 às 18:58
Atualizado em: 29 de março de 2021 às 07:45

Frei Estevão Nunes e a freira Rosária Nunes são exemplos,

hoje raros, de irmãos que seguiram a vocação religiosa

Irmãos comemoram data com bolo oferecido por amigos nos anos 1990



Sérgio Fleury Moraes

Da Reportagem Local

Minas Gerais, década de 1930. Era época de famílias numerosas, de muito trabalho na lavoura e do sonho dos pais de ver um dos filhos padre ou madre. Foi neste cenário que nasceram Francisco Anchieta e a irmã Maria Aparecida, numa família pobre de agricultores que nunca conseguiu comprar um metro de terra. Pois foi num sítio arrendado que Francisco e Maria cresceram e deram um duplo presente aos pais. Francisco se tornou o frei Estevão Nunes. Maria é a irmã Rosária, ambos da Ordem Dominicana.

Esta incrível história fincou raízes em Santa Cruz do Rio Pardo, cidade onde os dois irmãos mineiros ainda mantêm suas atividades religiosas. “Padre só se aposenta pelo INSS”, diz Estevão Nunes, 85. A irmã Rosária, 87, tem um distúrbio físico que dificulta sua locomoção. A memória, entretanto, está perfeita e a freira ainda se lembra da infância pobre, quando as bonecas eram feitas pela própria família. Ela nasceu em Borda da Mata, enquanto o irmão em Crisólia, um distrito de Ouro Fino.

Os irmãos moram na Comunidade Emaús, da Ordem Dominicana em Santa Cruz



Frei Estevão, aliás, lembra que só ganhou dois brinquedos “comprados” em toda a infância. A maioria das brincadeiras surgia da criatividade e de pequenas peças que o menino encontrava no sítio.

Mas o surpreendente foi a vocação religiosa. “Quando eu tinha cinco anos, dizia que seria padre e nunca soube o real motivo”, diz. “Mas o fato é que pedia a Deus para que me fizesse padre”, conta. Estevão, na verdade, só foi registrado em cartório em 1937. “A demora foi um descuido do meu pai, mas registrar com atraso era comum naquela época”, conta. O segundo nome, Anchieta, foi ideia da mãe, numa referência à já conhecida vocação que despertava. A família teve sete filhos, mas três morreram ainda crianças e outro, já adulto.

O engraçado é que o hoje frade dominicano admite que, como a maioria das crianças, não gostava muito das missas. “Eu me lembro que ficava puxando o paletó do meu pai para perguntar se já estava acabando a missa”, diz, rindo. “Mesmo assim, queria ser padre”.

Quando Estevão Nunes tinha quase 12 anos, a mãe resolveu realizar o desejo do filho e o levou ao seminário dominicano de Santa Cruz do Rio Pardo. A família, então, já estava morando em Cabrália Paulista. Depois, Rosária seguiu com os pais para o Paraná.

“Eu nem sabia que existia esta Ordem”, diz Estevão, lembrando que ingressou na Escola Apostólica Dominicana de Santa Cruz meio por acaso. “Meu pai não tinha recursos para pagar um seminário em Botucatu e um diretor do grupo escolar de Cabrália indicou a escola em Santa Cruz”, conta.

Pouco tempo depois, quando Estevão já estava em São Paulo cursando o noviciado, Rosária escreveu uma carta emocionante, contando seus planos de também se tornar uma religiosa. A vocação despertou alguns anos depois do irmão, mas foi igualmente forte. “Eu queria realmente ser freira”, diz Rosária.

Estevão completou os estudos na Itália, onde foi ordenado em 1956. Depois, foi diretor da Escola Dominicana e da tipografia responsável pela impressão de livros e revistas da Ordem em Santa Cruz. Foi redator da revista “O Apostolado da Verdade” e durante dez anos escreveu uma coluna no DEBATE.




Rosária Nunes até hoje mantém cadernos com gravuras religiosas e textos



Em tempos difíceis, irmãos

enaltecem vocação precoce

TRAJETÓRIA RELIGIOSA — Estevão Nunes foi ordenado sacerdote em 1956 e até hoje se mantém em atividade



Para frei Estevão Nunes, a vocação dos irmãos despertada ainda na infância foi fundamental para a longa trajetória religiosa. “Aqueles que entraram em seminários empurrados pelos pais não perseveraram. Mas a gente tinha mesmo esta vocação”, disse. Ele acredita, inclusive, que foi uma missão divina. “O curioso é que eu não tinha nenhuma convivência com padre na infância. As missas, inclusive, eram mensais, quando vinha um padre espanhol que a gente nem entendia o que ele falava”, conta.

Claro que houve muitos questionamentos e crises, todas enfrentadas com a fé. Estevão e Rosária, por exemplo, não tiveram tempo nem para aqueles tradicionais “namoricos” na infância.

Segundo ele, a educação rígida no seminário o ajudou a suportar os períodos mais difíceis sem ceder aos encantos mundanos. Afinal, o interno não tinha férias em casa e os pais só podiam visitá-lo uma vez por mês, apenas num domingo pela manhã. “Se eu tivesse estas férias, não sei o que teria acontecido. Muito provavelmente eu não seria padre, já que nas férias seria muito fácil abandonar tudo”, afirmou.

Rosária estudou na escola para freiras em Santa Cruz, que já não existe mais. Quando ganhou seu hábito — como é chamada a vestimenta religiosa —, passou a se dedicar principalmente no socorro aos doentes. “Nunca tive medo de contrair alguma doença”, revelou.

Às vésperas de completar 88 anos, Rosária ainda mantém uma tradição que adquiriu logo que entrou no convento: colar gravuras e escrever. Ela mostra dois cadernos impecáveis, com uma bela letra, figuras bíblicas e fotos de momentos marcantes. Junto com gravuras de Jesus e Nossa Senhora, há opiniões manuscritas e louvores a Deus.

Mesmo sendo uma das mais respeitáveis autoridades católicas de Santa Cruz, Estevão Nunes diz que, ao olhar para trás, poderia ter sido melhor. “Eu sempre soube qual é o meu ideal. No entanto, tenho consciência de que devia ter sido melhor, feito muito mais coisas”, admitiu.

Para ele, a redução das famílias e do hábito de orar em casa prejudicaram as vocações religiosas, cada vez mais raras. “Além disso, a vida se materializou demais. E a preocupação material abafa as necessidades espirituais”, lamentou.

Hoje, por exemplo, dificilmente uma mesma família teria dois filhos ordenados numa ordem religiosa. Como padre, Estevão celebra missas, atende famílias, está presente no confessionário e, aos 85 anos, ainda se mantém em plena atividade. E agora, pelo menos, não vai se incomodar se alguma criança, inquieta durante a missa, puxar o paletó do pai. 
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