CULTURA

Nath Camilo: 'O rapto da bondade'

Nath Camilo: 'O rapto da bondade'

Publicado em: 07 de setembro de 2018 às 16:10
Atualizado em: 26 de março de 2021 às 23:37

O rapto da bondade

Nath Camilo

Da Equipe de Colaboradores

O dia começava quente. Atravessava as costumeiras ruas para passar longe do latido dos cachorros. Entrava no trabalho. Sentava-se à mesa, ligava o computador. Em sua casa, sozinha, preparava sempre pães para o jantar. Ao se sentar para comer, sentia-se deprimida. Baixava os olhos, sentia-os se encher de lágrimas e chorava sua solidão. Ligava a TV. Via notícias horripilantes. Crimes contra crianças, contra bebês e contra idosos. Via assassinatos sanguinários, a luta contra a guerra do tráfico. Jovens sem esperança morrendo, soldados mortos por vestir o uniforme do país e tentar salvá-lo. Era injustiça, crueldade e brigas todos os dias. Depois ia dormir. Às vezes olhava as redes sociais, mas quando isso acontecia, reconhecia a constatação de ser sozinha no mundo. Poucos buscavam a luz dos olhos para falar com a alma.

Certa noite, ao voltar da padaria, tomou uma chuva forte. As ruas da pequena cidade se apagaram e tudo ficou muito escuro. De repente as luzes se acenderam, mas por um momento ela ficara na escuridão. E foi nesse átomo do tempo que ela chamara por Deus em sua mais pura razão, no espírito de seu inconsciente.

Ao chegar em casa, tomou um banho e chorou pela clemência que não tinha. Sentou-se, comeu pão com manteiga e tomou leite. Naquela noite, ao dormir, ouviu-se muito barulho de chuva, trovões e viram-se muitos relâmpagos. Ela delirou o desgosto do exílio em multidão, do retiro às seis da tarde, do deserto nas ruas de asfalto. Tudo eram breves sentimentos descampados, um verdadeiro morredouro do afeto.

Ela se sentia tão estrangeira dentro do mundo, que a todo o momento tomava cuidado para não ser tida como forasteira em terra própria. E naquela noite, ao dormir, ao ouvir o barulho ressoante do chuvisqueiro de verão, ao delirar os desvios da ternura, ela sonhou com Deus. E naquela noite ela pediu a Ele que a buscasse. E ela o ouviu dizer que a tomaria pelos braços.

Sonhou então com uma força brusca lutando contra a gravidade, removendo-a do solo encharcado de terror e apatia. Ao acordar, lembrou-se de imediato do sonho e sorriu. Desde então, ao chegar em casa, não ligava mais a TV, não entrava em redes sociais. Ela se ajoelhava e pedia a Deus para lhe dar paz. Dizia que queria sentir a quietude e a calmaria do céu. Certo dia, ainda verão, saiu de casa se desviando costumeiramente dos cachorros, fazia muito calor, ela usava saia cinza e camiseta branca, nos pés um par de sapatos azuis. No trabalho, fora a primeira vez em muitos anos que se distraira de fato.

Em sua casa, tomou banho e pôs-se de joelhos a conversar com Deus. Comeu metade de um pão, tomou leite e se deitou. Ouviam-se os primeiros trovões da chuva. E ela adormeceu. Sonhou que estava na praia. Mas não estava sozinha, havia alguém do seu lado. Ela percebia que aquele ser era parte de um princípio da vida. E disse “-Este é um sonho lindo, areias brancas, mar azul, o pôr do sol... Só queria saber quem é você que me trouxe tanta paz”. E o ser respondeu “-Este não é um sonho... É a sua vida. Olhe em sua volta! Vê alguma coisa?”. “-Nada de mais. Não há nada aqui”. “-Não notou nada incomum? Olhe, não há pegadas na areia. Nem as minhas, nem as suas. Sabe o que isso significa?”. “-Que estou sonhando”. E ela viu o sorriso do ser que era de luz. “-Você pediu para Deus te dar paz. Ele te atendeu. Não há pegadas na areia porque você já não faz parte da terra. Está em minhas asas, está voando comigo. Você tem coragem de ver o pulso contra a gravidade?”. “-Sim!”. Respondeu a garota. Que em uma partícula de instante sentiu o intenso entrave entre empurrar e sugar. E de repente, estava fora do globo, fora da camada de ozônio, fora da galáxia conhecida. Ela fora arrebatada.

E finalmente, sentia felicidade, calmaria, repouso, quentura e força para viver algo que não fosse desumano; embora fosse humano demais.

* Nath Camilo é escritora

santa-cruzense, autora de

“A Névoa Cinza do

Paraíso” e outros livros
SANTA CRUZ DO RIO PARDO

Previsão do tempo para: Terça

Períodos nublados
15ºC máx
4ºC min

Durante todo o dia Céu limpo

voltar ao topo

Voltar ao topo