CULTURA

Nos anos de chumbo

Ex-vereador do MDB foi perseguido e chegou a ser levado ao Dops. Também comandou vários grupos políticos em Santa Cruz e deixou a vida pública sem uma única mancha

Nos anos de chumbo

O ex-vereador Jorge Araújo em sua loja de confecções e aluguel, no centro de Santa Cruz do Rio Pardo

Publicado em: 05 de fevereiro de 2022 às 03:19
Atualizado em: 10 de fevereiro de 2022 às 20:05

Sérgio Fleury Moraes
Da Reportagem Local

Na semana em que completou 81 anos em plena atividade, o alfaiate Jorge de Araújo disse que não tem o que reclamar da política, atividade que começou “sem querer” em 1976, quando tinha apenas 35 anos.

Era a época em que vereador era uma função voluntária daqueles que queriam ajudar a cidade, sem qualquer tipo de remuneração. “Fiz a minha parte e posso considerar que sou realizado”, disse à reportagem no final da tarde de quinta-feira, 3, enquanto finalizava os trabalhos na loja “Jorge Confecções”, que tem mais de meio século.

De fato, o ex-vereador tem motivos para se declarar realizado. Vereador por vários mandatos, presidente da Câmara, construtor da sede do Legislativo e até candidato a prefeito, Jorge Araújo deixou de lado a política sem uma única mancha em seu currículo. A receita? “Trabalhar honestamente, como meu pai me ensinou”, disse.

 Jorge de Araújo mostra a antiga máquina de costura da  mãe, que ainda conserva em sua casa

Claro que Jorge de Araújo nem de longe é um esquerdista, comunista ou terrorista. Muito pelo contrário, uma vez que é evangélico e possui um perfil político conservador. Mas isso não o impediu de ser levado coercitivamente ao Dops — Departamento de Ordem Política e Social — no período da ditadura militar, ser fotografado como preso e ameaçado pela Lei de Segurança Nacional. Aconteceu em 1981, mas é apenas uma parte da história do ex-vereador.

Alfaiate que nasceu no bairro rural do Ribeirão dos Cubas, em Caporanga, e começou a trabalhar aos nove anos, Jorge ainda guarda a velha máquina de costura da mãe — uma Pfaff alemã.

Mas ele também se adaptou aos tempos, já que alfaiate é uma profissão que pode ser extinta pelo avanço tecnológico. Assim, Jorge também trabalha no ramo de venda e aluguel de ternos, calçados e todos os demais acessórios da moda.

No início, o comércio sofreu um grande drama: a loja, que ficava algumas quadras abaixo da mesma rua Euclides da Cunha, pegou fogo e tudo foi destruído. Sem dinheiro e com dívidas enormes, uma vez que todo o estoque virou cinza ainda na caixa, Jorge procurou os credores para avisar que pagaria tudo, mas precisava de um tempo.

Para surpresa, um deles resolveu apostar no jovem alfaiate e não apenas deu prazo como mandou caixas e caixas de tecidos para reabastecer o comerciante. “Eu paguei tudo em menos de um ano, mas aquele gesto me marcou tanto que o industrial se tornou meu amigo e fornecedor até o final da vida dele”, lembra.

Muitos anos depois, já um comerciante de sucesso, Jorge de Araújo disse que a pandemia foi outro baque. “Houve aqueles momentos em que ninguém podia entrar na loja, nem para comprar uma meia ou uma cueca. Foi difícil, e minha sorte é que tinha uma reserva financeira para atravessar este período. Hoje já melhorou, mas ainda não atingiu o índice de vendas de antes da pandemia”, disse.

Jorge também foi servidor público estadual, funcionário da Segurança Pública durante décadas até se aposentar.

ELEIÇÕES DE 1982 — Em foto oficial da campanha eleitoral de 1982, Jorge e o vice Mário Nelli posam ao lado de Franco Montoro e Orestes Quércia: eleições foram gerais

Mas quando o assunto é política, Jorge de Araújo se solta mais e seus olhos brilham. “Foi sem querer”, diz, rindo, sobre seu ingresso na vida pública. Um dia, o delegado Agnaldo de Lima Viotti o chamou porque o advogado Cláudio Catalano queria conversar com Jorge.

Era 1976, e Cláudio, um dos fundadores do MDB de Santa Cruz — o primeiro partido de oposição à ditadura, uma vez que todos os demais grupos políticos eram aliados da Arena, a legenda do regime militar — convidou Jorge para ser candidato a vereador.

O alfaiate recusou, mas acabou aceitando ao menos se filiar ao MDB, mesmo sabendo que poderia ser perseguido como servidor público. Afinal, o País era comandado pela Arena, desde a administração municipal, passando pelo governo do Estado e a presidência da República.

No dia da convenção do MDB, Jorge viajou para o Paraná e nem compareceu à Câmara para o lançamento da candidatura de Cláudio Catalano e do vice “Kaneta”. Quando voltou, Cláudio e mais dois dirigentes do partido o aguardavam na porta de sua casa, com vários pacotes.

“O Cláudio disse que não me encontrou, deu uma desculpa qualquer, e anunciou que meu nome tinha sido aprovado na convenção como candidato a vereador. Nem acreditei”, contou. Os pacotes eram os impressos de campanha.

E lá se foi Jorge Araújo para a sua primeira eleição. Foi o segundo mais votado, com quase 1.000 votos, só perdendo para o candidato a vereador apoiado pelo grupo Quagliato. A cidade tinha um eleitorado bem menor do que o atual, e Cláudio Catalano também perdeu para Aniceto Gonçalves, por 7.670 a 5.061.

O alfaiate assumiu o mandato em março de 1977. “E gostei da política”, revela. Porém, foram anos conturbados para um vereador do MDB numa bancada de apenas quatro vereadores contra nove da Arena.

O problema é que a oposição ao regime militar resvalou na sua condição de servidor público. Jorge passou a ser perseguido pelo novo delegado de Santa Cruz, Nilton Henrique Peccioli, simpatizante da Arena e do regime militar. Desde então, ele não recebia uma promoção sequer no serviço público.

Um dos episódios mais turbulentos do vereador aconteceu em 1981, quando ele, junto com outros vereadores do novo PMDB, iria usar a tribuna para denunciar as altas contas da Sabesp em Santa Cruz. A empresa havia assumido os serviços de água e esgoto no ano anterior, na gestão do governador nomeado Paulo Maluf, e aumentou deliberadamente o valor das tarifas, provocando uma revolta popular.

Era a noite de 5 de março de 1981, uma quinta-feira que teria futebol ao vivo pela televisão. Moradores lotaram o recinto da Câmara. Eram homens e mulheres, muitos idosos, exibindo contas com valores absurdos nas mãos. Porém, quando chegou a hora dos discursos, a bancada governista resolveu encerrar a sessão.

Foi o estopim para um quebra-quebra generalizado. Uma multidão que crescia a cada minuto depredou o prédio da Câmara e, minutos depois, a sede da Sabesp, prefeitura e casa do então prefeito Aniceto Gonçalves. No dia seguinte, Santa Cruz foi cercada por tropas da Polícia Militar de Ourinhos, Bauru e Marília. A cidade foi praticamente sitiada.

Na Câmara, com debates envolvendo os então vereadores Adilson Mira e Otacílio Parras

O governo ameaçou supostos líderes da revolta com a Lei de Segurança Nacional. Um telex do delegado Nilton Henrique Peccioli aos superiores informou que as depredações foram lideradas pelos vereadores Jorge de Araújo e Israel Benedito de Oliveira e pelo ex-vereador Antônio Francisco Zanette, o que não era verdade.

Aliás, Jorge e o professor Celso Fleury Moraes — na época o presidente do PMDB — conseguiram evitar até que o prédio do cinema, atual “Palácio da Cultura Umberto Magnani Netto, também fosse depredado.

Poucos dias após a revolta, Israel Benedito de Oliveira, o vereador “Nenê Mamona”, deixou a cidade e se escondeu na casa de amigos. Jorge estava almoçando quando dois agentes de São Paulo o abordaram em sua casa e comunicaram que ele seria levado imediatamente para o Dops, um dos símbolos da repressão do regime militar.

“Eu até perguntei o que tinha feito, mas a ordem era para condução coercitiva. Os agentes disseram que era uma coisa muito grave e que eu deveria perder a função pública”, disse.

Na sede do Dops, Jorge foi fotografado como suspeito, inclusive com aquela típica placa numérica, e ficou isolado numa sala. A sorte do vereador é que, de repente, ele foi visto pelo delegado-geral José Otávio Carneiro da Silva, o “Bronquinha”, que havia trabalhado em Santa Cruz do Rio Pardo.

“Ele era conhecido como muito rígido, mas meu amigo. O delegado se surpreendeu com minha presença e disse que tomaria providências. Eu contei a ele que nunca atirei pedra em ninguém”, disse.

“Bronquinha” deixou a sala e voltou alguns minutos depois. “Ele comunicou que eu estava liberado. Foi um alívio, mas eu precisei pedir um passe de trem ao delegado porque saí de Santa Cruz só com a roupa do corpo, sem dinheiro algum”, lembra. Jorge desembarcou na estação de Ipaussu e conseguiu fazer contato com a mulher para buscá-lo.

Àquela altura, Luzia Ortega Araújo estava desesperada, procurando o marido por quase dois dias.

Quando Jorge apareceu na Delegacia de Polícia no dia seguinte, o delegado Nilton Henrique Peccioli se assustou. É que ele imaginava estar livre do desafeto, mas recrudesceu as pressões para a transferência do funcionário. De tempos em tempos, Jorge era chamado na sala de Peccioli para assinar um documento. “Era meu pedido de transferência para outra cidade. Resisti o quanto pude, até que durante um tempo eu fui colocado à disposição da Segurança Pública de Ourinhos”, contou.

O impasse chegou ao conhecimento do juiz da cidade, Pedro Cândido Alem Júnior, que não gostou da atitude do delegado. “Ele também me conhecia e considerou minha transferência uma injustiça. Acabou chamando o delegado no Fórum e tudo mudou”, disse.

O que não mudou foi o clima tenso na política de Santa Cruz. Dos meses depois do tumulto popular, o vereador João Capistrano de Paula chegou à sessão da Câmara portando uma arma e ameaçou Jorge. “Pouco antes da sessão começar, ele mostrou o revólver na cozinha e disse que naquela noite iria calar a oposição na bala”.

Quando a sessão começou, Jorge pediu a suspensão dos trabalhos por falta de segurança. No tumulto que se formou, o ex-vereador Antônio Francisco Zanette, que estava na plateia, começou a dizer em voz alta que Capistrano era covarde por portar um revólver. Os dois começaram a discutir, só separados pelo balcão da antiga Câmara que dividia o plenário da plateia, e chegaram a trocar socos no ar.

De repente, Capistrano saca a arma e é contido por Jorge Araújo e Israel Benedito de Oliveira, que se esforçam para desarmá-lo. Quando o revólver cai ao chão, a polícia chegou. Capistrano foi levado à delegacia, mas o delegado Nilton Henrique Peccioli não registrou o flagrante e facilitou tudo para o vereador do grupo favorável ao regime militar.

Mesmo livre de processos no caso da Sabesp, Jorge foi alçado à condição de maior líder oposicionista em Santa Cruz na época, sendo lançado candidato a prefeito nas eleições de 1982. O vice foi o músico e maestro Mário Nelli.

No ano anterior, foi o vereador quem trouxe a Santa Cruz o senador Franco Montoro que, em cima de um modesto caminhão na praça dos Expedicionários, falou para um grupo reduzido de pessoas e se lançou, pela primeira vez, candidato ao governo de São Paulo.

Em 1991, Jorge está à esquerda, perto de Montoro no pequeno palanque na praça dos Expedicionários

A eleição de 1982 foi geral e pela primeira vez desde a implantação da ditadura militar o povo votou para governador. Porém, a sucessão municipal foi tumultuada, com Jorge e outros quatro candidatos disputando o cargo em sublegendas. O eleito foi Onofre Rosa de Oliveira.

Mas Franco Montoro, que se tornou amigo de Jorge, foi eleito governador com uma votação avassaladora. O novo governador logo chamou o já ex-vereador para uma conversa no Palácio dos Bandeirantes. “Eu contei minha história a ele, revelando as perseguições e o fato de nunca ter recebido uma única promoção”, lembra.

De volta a Santa Cruz, o rumo da história mudou. De repente, sai no “Diário Oficial” cinco promoções de uma só vez para o servidor público e o delegado Peccioli acabou sendo transferido.

O alfaiate se engajou de vez na vida política e conheceu grandes personalidades do País, como Ulysses Guimarães, Almino Afonso, Orestes Quércia, Mário Covas e outros. O ex-senador Fernando Henrique Cardoso chegou a dormir em sua residência numa de suas passagens por Santa Cruz antes de se tornar presidente da República.

Jorge voltou à Câmara em 1993 e ainda foi reeleito para os períodos 1997-2000, 2005-2008 e 2009-2012. Ele ainda disputou as eleições de 2000, 2012 e 2016 e não foi eleito, embora recebesse mais votos do que alguns vereadores eleitos. “Agora chega, já fiz minha parte”, garante.

Na legislatura 2005-2008, Jorge presidiu a “CPI do ITBI”, que apurou irregularidades e pagamento de propina ao então prefeito Adilson Mira na isenção de impostos concedido a um empresário plantador de laranja.

O relatório final responsabilizou Mira e levou o chefe do executivo a ser condenado na Justiça posteriormente. Foi um período conturbado, quando o vereador era ofendido pelo então prefeito diariamente pelos microfones da rádio Difusora.

Como vereador, ele ainda presidiu a Câmara em duas legislaturas. Na última, entre 2011 e 2012, Jorge de Araújo teve a audácia de iniciar a construção do novo prédio da Câmara. Na época houve críticas ao projeto, e Jorge acredita que o resultado foi sua derrota nas eleições seguintes.

“Mas hoje as pessoas dão valor ao prédio”, garante o alfaiate, lembrando que o imóvel na Clementino Gonçalves é uma das últimas grandes construções públicas em décadas.

Jorge lembra que enfrentou pressões de todos os lados para não construir o edifício, inclusive do governo da então prefeita Maura Macieirinha, que considerava a obra um desperdício.

“Eu sempre fui uma pessoa determinada. Com ou sem pressão, avisei que o prédio iria sair”, lembrou. De fato, a construção foi iniciada em sua gestão como presidente da Câmara.

Quando a obra estava em fase de licitação, Jorge lembra que recebeu a visita de um homem de terno com uma pasta na mão, que queria conversar “em particular”. O então presidente da Câmara disse que as portas de seu gabinete jamais se fechariam e o sujeito, então, expôs seu projeto: tinha cinco empreiteiras sob seu comando, poderia “fechar” a licitação e, no final, daria uma “comissão” de 10% ao presidente. “Eu disse: 10? Pois o senhor tem um minuto para deixar este prédio. E não apareça na licitação se não quiser ser denunciado”.

O prédio foi concluído na gestão seguinte, quando o presidente da Câmara era Roberto Mariano Marsola. Como obra do destino, Jorge de Araújo nunca voltou a ser vereador no prédio que planejou.

 

Jorge já encontrou dinheiro da compra
de uma casa na rua. E devolveu ao dono

O alfaiate que foi um dos principais políticos contemporâneos de Santa Cruz do Rio Pardo não apenas prega a necessidade de ser honesto, como já demonstrou esta virtude na prática. Como policial, foram inúmeras as tentativas de suborno ao longo da carreira. “Felizmente, eu tive uma sólida educação de meus pais”, lembra.

Certa vez, ele chegou a encontrar um volume na rua com o dinheiro equivalente à compra de uma casa. Era um pacote e ele imediatamente levou à delegacia e registrou tudo em documento. Não satisfeito, levou o dinheiro à agência do antigo Banespa e fez um depósito consignado em nome da Polícia Civil, enquanto aguardava que o dono aparecesse.

E o homem surgiu. Havia vendido sua residência e iria levar o dinheiro para comprar outra, quando perdeu o pacote na rua. “Tudo foi devolvido quando ele provou que era o dono. Havia a compra da casa, o saque bancário e tudo bateu”, disse.

O curioso é que, dois anos antes, o mesmo cidadão estava dirigindo sem carteira de habilitação e foi parado por Jorge. “Eu dei uma chance a ele para procurar um despachante e providenciar a habilitação. Mas ele não o fez e novamente eu o encontrei. Aí não tive dúvidas em apreender o veículo. No caminho, ele me ofereceu uma ‘gorjeta’, mas eu o adverti que, se insistisse, seria preso junto com o carro”.

Quando aconteceu o episódio do pacote de dinheiro, o homem se lembrou daquela passagem e, emocionado, disse a Jorge que realmente a honestidade é a virtude mais importante de qualquer pessoa.

Em outra ocasião, um grave acidente matou um comerciante na rodovia. Jorge atendeu a ocorrência e descobriu um grande valor em dinheiro dentro do carro. Imediatamente providenciou o recolhimento das cédulas.

“Tinha um policial que sugeriu pegar pelo menos um maço, dizendo que ninguém iria notar. Deu o que fazer para conseguir sair dali e levar o dinheiro à delegacia. Fiz um auto de apreensão dos valores e pedi a assinatura de várias pessoas, inclusive daquele policial. Afinal, o motorista certamente tinha família que iria precisar daquele dinheiro”, contou.

De fato, a viúva apareceu dias depois e perguntou se não havia dinheiro no carro acidentado. Era o produto da venda de um rebanho e ela disse exatamente o valor que estava apreendido. O dinheiro foi entregue à família.

Tempos depois, Jorge foi chamado à secretaria da Segurança Pública de São Paulo. Desta vez, não havia mais Dops e nem repressão — e ele foi homenageado como símbolo de retidão. Na verdade, a viúva, como forma de gratidão, havia encaminhado ao governo paulista uma carta relatando todo o acontecido e elogiando o funcionário público. (S.F.M)

SANTA CRUZ DO RIO PARDO

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