CULTURA

Pascoalino: 'De uma nota de falecimento'

Pascoalino: 'De uma nota de falecimento'

Publicado em: 05 de julho de 2019 às 14:22
Atualizado em: 29 de março de 2021 às 08:40

De uma nota de falecimento

Pascoalino S. Azords

Da equipe de colaboradores

A morte da escritora inglesa Barbara Cartland, em maio de 2000, foi noticiada no mundo todo – até no Brasil! Miss Cartland tinha 98 anos de idade e dezenas de secretárias espalhadas pela casa, prontas para anotar tudo o que ela ditasse. (Com aquelas unhas enormes, só mesmo ditando e se lavando no bidê). Tinha colares de pérolas legítimas dando voltas no pescoço. Tinha todas as cores da caixa de lápis de cor no rosto, e, acima de tudo, tinha escrito 723 romances até o domingo em que a morte a encontrou com vida na cinzenta capital inglesa.

Setecentos e vinte e três romances, para que não paire nenhuma dúvida. Esse sim um número que merece ser escrito por extenso, e não aqueles dez reais de gasolina que eu pago com uma folha de cheque.

Matemática não é o forte de ninguém saudável, mas aí estão as calculadoras eletrônicas que não me deixam mentir: Se Barbara Cartland começou a escrever a sua obra aos 8 anos de idade, ela produziu em média oito romances por ano nos 90 anos que teve pela frente! Ou nove romances por ano, caso tenha publicado o seu primeiro livro aos 18 anos de idade, como Raquel de Queirós! Convenhamos, números como esses merecem não apenas um, mas um pelotão de pontos de exclamação.

E pensar que João Cabral de Melo Neto gastou até 10 anos com certos poemas. Ou que o mexicano Juan Rulfo escreveu um único romance, fininho, mas o bastante para que Gabriel Garcia Márquez o considerasse um mestre. Imagina se Juan Rulfo tivesse escrito 1% dos 723 romances que miss Barbara Cartland produziu.

E para não dizer que não falei de dinheiro, saco novamente minha calculadora. Por menor que seja a porcentagem sobre o preço de capa paga aos escritores ingleses, é evidente que Barbara Cartland tenha acumulado uma fortuna invejável. Ela não só escreveu 723 romances como vendeu 1 bilhão de exemplares em todo o mundo. À base de um dólar furado por cada livro vendido, 1 bilhão de dólares a colocariam entre os dez homens mais ricos do Brasil. Eu não sei o que uma senhora de 98 anos faria no meio de 10 homens ricos, mas isso é problema dela – ou deles.

A breve notícia do falecimento de Barbara Cartland diz que a escritora morreu de causa não revelada. Ora, nem precisa chamar o Badan Palhares, aquele legista que errou em 10 centímetros a altura do cadáver de P.C. Farias. Barbara Cartland só pode ter morrido de uma coisa: de tanto escrever! Para produzir oito ou nove romances por ano, durante quase um século, a coitada, por certo, não tinha tempo nem para trocar a roupa de baixo. Miss Cartland não era uma escritora, era uma autêntica máquina de escrever – auto-limpante!

Mas, quanto interessante pode ter sido a vida de uma mulher que escreveu ou ditou 723 romances? Vamos compará-la com a vida daquele bancário que passa a vida contando dinheiro. Para contar a fortuna de Barbara Cartland estimada por mim, em notas de 1 real o bancário levaria 96 anos. Tente imaginar um bancário que passa a vida contando dinheiro, ou um outro tipo de doido que contasse qualquer coisa, ininterruptamente, à base de uma unidade por segundo. Sem parar um instante, nem para ir comprar uma pamonha na feira. Pois assim deve ter sido a vida de Barbara Cartland.

E é justamente aí que está a sua maior extravagância. Para conseguir escrever 723 romances ela, certamente, não pôde desperdiçar tempo com banalidades, como tomar uma cerveja – meia cerveja, vá lá – num pub pertinho de casa.

Não faço idéia do que uma pessoa que não perde tempo com banalidades tenha tanto para dizer aos seus leitores. Refém de seu próprio destino, como a araponga, coitada, que não pode abrir o bico sem que de dentro dela saia aquela martelada em forma de canto.



  • Publicada originariamente em 11/06/2000


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