CULTURA

Pascoalino: 'Declaração simples da minha vasta ignorância'

Pascoalino: 'Declaração simples da  minha vasta ignorância'

Publicado em: 30 de agosto de 2019 às 14:47
Atualizado em: 24 de março de 2021 às 07:04

Declaração simples da

minha vasta ignorância

Pascoalino S. Azords

Da equipe de colaboradores

Na minha cidade não tinha biblioteca, nem livraria. Minto. Entre a farmácia do Fumagali e a Pernambucanas tinha uma portinha com o sugestivo nome de Livraria Mariza. Era um prédio em alvenaria, pintado em um amarelo de Van Gogh que doía na vista. O Aladim, que começou na vida vendendo jornais empilhados numa cadeira na rodoviária velha, agora também supria a cidade nas suas necessidades de revistas e gibis, material escolar e fogos de artifício, álbum de figurinhas e discos de vinil. Mas apesar do nome, não me recordo de uma única prateleira de livros na Livraria Mariza. No máximo a cartilha Caminho Suave, a Novíssima Gramática de Domingos Paschoal Cegalla, e uns livros de biologia onde a gente podia ver as ilustrações cavitárias do aparelho reprodutor feminino sem precisar confessar para o padre.

Já a nossa primeira biblioteca nasceu de uma gincana escolar. A classe que arrecadasse mais livros ganharia uma excursão de três dias para Lagoa Santa. Concorriam as quatro séries do ginasial, de forma que o exército que varreu minha cidade à cata de livros usados era formado por jovens de no mínimo 10 e no máximo 16 anos de idade – o Reinaldo Coutinho era o mais velho da turma, não porque fosse burro, mas porque morava no sítio e tinha começado tarde os estudos.

Eu ia pela terceira série nessa época e só conhecia a Lagoa Santa de ouvir contar. Era para lá que iam os noivos cujas economias não permitiam chegar a Poços de Caldas em viagem de lua de mel. Da Lagoa Santa os noivos voltavam com aquela indefectível cara de culpa e a mesma lembrancinha do lugar: uma redoma de vidro, pouco maior que uma laranja, onde Nossa Senhora vinha imersa na água quente e límpida e santa da lagoa.

A 4ª série era o obstáculo natural às pretensões da minha classe vencer a gincana. Na adolescência, um ano faz muita diferença, e na quarta série estudava o irmão mais velho de alguns dos meus colegas de turma. Uns até já namoravam! Eram nossos algozes no basquete, no futebol, e já não precisavam falsificar a carteirinha de estudante para assistir aos filmes impróprios para menores de 14 anos.

Mas, como no futebol moderno — onde um Japão pode derrotar o Brasil em plena Copa – a minha classe acabou vencendo a competição, com muitos livros de vantagem. E como as classes de então já eram mistas, o diretor convocou alguns professores e seu próprio pai para dividir com ele a tarefa de cuidar da moçada. Uma cidade sem livraria e sem biblioteca era mesmo muito ingênua. Quem podia imaginar que o professor de matemática, o primeiro que se ofereceu para nos pajear, tinha um caso com uma aluna (a única que fumava no recreio), como ficamos sabendo alguns anos depois? Ou que o pai do diretor era doido de pedra, como se viu ao chegar à lagoa. O velho fazia suas necessidades fisiológicas trepado nas árvores que estendiam seus galhos sobre o rio. A parte sólida do espetáculo fazia a festa dos peixes mortos de fome que a gente também podia ver naquela paisagem intestinal e bucólica.

O que me lembro daquela viagem à Lagoa Santa? Pouca coisa, para a felicidade do diagramador e alívio do leitor que já tem a vista cansada. Que o ônibus ficou na margem oposta do Aporé, pois a travessia de Mato Grosso para Goiás era feita numa pequena balsa presa a uma corda de sisal. Que o povoado no entorno da lagoa consistia de uma única rua de terra, paralela ao rio que descia com pressa para engrossar o Paranaíba. Das construções, todas de madeira, que avançavam sobre o rio em palafitas. Do hotel de tábuas onde eram servidas as refeições e ficaram alojados os adultos e as meninas. (Para os meninos o diretor conseguiu emprestado o rancho de pesca de um emergente político da minha cidade. Dormíamos no chão batido, já que o rancho era só portas, paredes e telhado; sem água encanada ou energia elétrica). E me lembro que um menino descalço aparecia com uma cesta de pão quente quando o sol mal tinha nascido.

A lagoa era cercada por uma vegetação nativa cortada por uma trilha curta a partir do hotel e tinha a forma de uma cratera. Um tablado de madeira levava a uma pequena ilha onde ficava a capelinha de uma Nossa Senhora que apareceu sem maiores explicações naquelas águas mornas à margem do Aporé. Em qualquer ponto, a lagoa só batia no peito, mas dava para os cardumes birutas e uma infinidade de jardins submersos que balançavam em meio aos peixes. O fundo inteiramente forrado de pedrinhas garantia a transparência da lagoa. Na entrada da trilha tinha um sino que soava a cada duas horas anunciando o término e o início do turno dos homens e das mulheres. Depois das seis da tarde, e durante toda a noite, os banhos na Lagoa Santa eram liberados para ambos os sexos — que naquele tempo parecia que eram dois.



  • Publicada originariamente em 01/04/2001


SANTA CRUZ DO RIO PARDO

Previsão do tempo para: Sábado

Céu nublado
22ºC máx
10ºC min

Durante a primeira metade do dia Períodos nublados com tendência na segunda metade do dia para Céu limpo

COMPRA

R$ 5,41

VENDA

R$ 5,42

MÁXIMO

R$ 5,43

MÍNIMO

R$ 5,39

COMPRA

R$ 5,45

VENDA

R$ 5,63

MÁXIMO

R$ 5,46

MÍNIMO

R$ 5,43

COMPRA

R$ 6,38

VENDA

R$ 6,39

MÁXIMO

R$ 6,38

MÍNIMO

R$ 6,37
voltar ao topo

Voltar ao topo