CULTURA

Pascoalino: "O Negão acredita em milagre"

Pascoalino:

Publicado em: 06 de abril de 2020 às 10:02
Atualizado em: 29 de março de 2021 às 14:19

O Negão acredita

em milagre

Pascoalino S. Azords

Da equipe de colaboradores

Acho que nunca escrevi para tanta gente. Ou melhor: nunca escrevi pensando em tanta gente. Meu leitor alvo de hoje é todo aquele ou qualquer um que esteja cansado das mentiras fiadas que se ouve durante uma campanha eleitoral. Vamos falar de outra coisa, que o Brasil não é apenas essa pedição e a compra deslavada de votos.

“51 horas na mesa de cirurgia. Um jalesense passou a semana no noticiário dos grandes jornais, revistas e sites brasileiros. Onivaldo Cassiano, o ‘Negão’, de 50 anos, sobreviveu a uma cirurgia inédita em Londrina, no Paraná, onde mora atualmente”.

Ao leitor pouco ou nada deve importar a sobrevida desse Onivaldo distante. A banalização da morte de estranhos calejou o coração dos homens. Nem a mim, que conheço Onivaldo há mais de 40 anos, a sua sobrevida chega mais a comover. Eu podia pegar uma carona nesses 15 minutos de fama de um amigo de infância e lembrar algumas histórias da Rua Elizabete, onde vivíamos descalços num outro Brasil de almanaques de farmácia e Jeca Tatu. Seu pai montou a primeira escola de datilografia na Rua 2, numa época em que a cidade era tão recente que ainda não tinha mortos para emprestar o nome aos logradouros públicos. A última do Negão foi conseguir me vender um Tempra, quando esteve à frente da Fiat de Ourinhos, pelo que já o perdoei há alguns anos.

O que há de tão espetacular nessa operação que teve como palco o centro cirúrgico do Hospital Evangélico de Londrina? 1º) A cirurgia consumiu o estoque sanguíneo da capital do norte pioneiro do Paraná e cidades vizinhas. Naqueles dois dias mais de 100 litros de sangue passaram pelo corpo do Onivaldo – o corpo humano contém, em média, 7 litros de sangue. 2º) A solução encontrada pelo cirurgião para estancar a hemorragia cobrindo todo o sistema cardíaco com cola. 3º) O currículo do médico Francisco Gregori Júnior, que inclui mais de 26.000 corações operados, a criação de válvulas cardíacas e aplicação de super bonder para suturas com sucesso há mais de 10 anos. 4º) As 51 horas que uma equipe composta por quatro cirurgiões e três residentes esteve debruçada sobre o corpo do paciente.

Pois o que me parece mais fantástico é o fato de, em pleno século XXI, um médico lutar por 51 horas seguidas pela vida de um desconhecido. Convenhamos, 51 horas a gente não consegue passar debruçado nem sobre uma praia paradisíaca, com camarãozinho e cerveja gelada! Onivaldo credita sua sobrevida a um milagre, enquanto o cirurgião preferiu se rematricular numa academia de ginástica para não ser pego fora de forma no caso de uma nova operação desse porte. Enquanto Onivaldo reza, o médico conta que foram tentadas todas as técnicas possíveis para estancar o sangue, de drogas coagulantes e suturas mais apertadas ao uso das mãos para comprimir a hemorragia. “Intimamente, eu me dava prazos para resolver aquilo. Depois de um tempo, pensava: será que não está na hora de parar? Mas bastava uma mexidinha dele para eu ganhar de novo o ânimo. Eu não tinha como desistir”, conta o cirurgião.

Como foi notícia em todo o Brasil, imagino o efeito que essas palavras tiveram sobre aqueles que, às primeiras voltas dos ponteiros, já acham que está na hora de parar. Não me refiro a um improvável peso de consciência. Essa gente estuda pra isso, ou para não sofrer disso. Por que o doutor Gregori Júnior não optou pelo mais fácil? A cirurgia devia durar 3 horas. Quem haveria de questionar a morte do Negão depois da terceira ou quarta hora de hemorragia?

Onivaldo, me desculpe, mas a sua sobrevida por esses dias me importou menos do que a atitude desse médico paranaense. Naquela manhã em que você foi internado para corrigir um aneurisma na artéria aorta, e pelas 51 horas seguintes, a agenda do doutor Gregori Júnior mais parecia a de um Robinson Crusoé. Não havia uma partida de tênis a ser jogada no clube dos médicos, um jantar dançante, uma rodada de buraco regada a conversa mole e bebida importada, uma mesa reservada na Cachaçaria, um churrasco no rancho da beira do rio, nada! Era o peito aberto de um desconhecido e o doutor Francisco Gregori Júnior que só precisava de um pouco de cola.

* Publicada originariamente em 07/09/2008



  • Publicado na edição impressa de 29/03/2020


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